sábado, 18 de julho de 2020



18 DE JULHO DE 2020
LYA LUFT

A surpresa da cor

Hoje, mais uma brincadeira com meus amados leitores, mas malandragenzinha boa, nada malévola como tantas que fazemos. (Eu, pessoalmente, odeio essas.) Aqui vão textos que vocês possivelmente não conhecem ou não vão reconhecer. Mas espero que gostem. Ao menos, mais ou menos.

Ah solidão de exílio escolhido, ah frios grotões de sombra e susto, ah trilhas de nostalgia de mim... ah esses meus passos infindos, ah orfandade, ah cálidas fezes, ah caudas inquietas e fantasmas tristes, ah vida esquartejada, ah chão de passarinhos mortos... ah maldita, ah venerada amante morte malefício e sorte, ah compassiva mãe, floresta escura, enfim.

O tempo rasteja no telhado depois de se fazerem filhos e dívidas, e as dúvidas brotarem nas frestas. O tempo trança bordados no rosto e manchas na mão, mas a gente não muda: ainda chove no escuro e um pássaro começa a cantar, um amigo morre antes dos 40 anos, e nossa mãe, com quase cem, nem está nem se ausenta.

Como tudo o mais, o tempo não tem explicação: corrói e transfigura, expande ou empobrece, conforme a escolha de cada um, ou suas tragédias. (Eu, com medo e susto, escolho a multiplicação.)

Foi meu pai quem plantou esse álamo no meu jardim. Podou seus ramos, e desde então seus dedos se multiplicaram, sua voz se perpetuou em folhas depois de cada inverno.

E quando o vento perpassa os altos ramos do álamo generoso, o tempo se dá por vencido, a dor recolhe suas asas: meu pai conversa comigo, andando pela calçada entre o meu coração e a sua morte.

A parte dura desta humana lida é dizer sim na hora do não, escolher mal entre silêncio e grito, entre a noite e a explosão do dia. Ceder quando devíamos negar, dizer vai em lugar de pedir que fique, partir quando era bom amar, fechar-se em vez de resgatar a vida.

Sermos tão incertos e indecisos, perdendo o trem, a hora, o agora: mas a gente tinha pressa, queria acertar, estava aflito, e não sabia.

O rumor de uns passos enérgicos, a voz me chamando no jardim, na sala rosas com nomes secretos, e um perfume igual ao dela. Legou-me sua alegria inesquecível, o amor à vida, e algo do perfil. Não sua beleza: essa ficou nos retratos.

Nada lhe significo mais: quando me vê enxerga outros rostos, mais reais do que eu na sua filha. É minha mãe e não é, vive e não vive, na clausura da mente enevoada. Mas eu, a cada visita, espero o impossível: que ainda uma vez o seu olhar me alcance, e por um momento ela ame, nesta mulher, a sua filha.

Apesar do medo, escolho a ousadia. À certeza das algemas, prefiro a dura liberdade. Voo com meu par de asas tortas, sem o tédio da comprovação. Opto pela loucura, com um grão de realidade: meu ímpeto explode o ponto, arqueia a linha, traça contornos para os romper. E não mistura as tintas, porque deseja a surpresa da cor.

LYA LUFT

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