31 DE JULHO DE 2020
EDUARDO BUENO
O guará, a ema e o vira-lata
Se a reencarnação de seres humanos está longe de ser consenso entre as religiões (embora tanto as mais evoluídas - o budismo e o hinduísmo - quanto as mais "primitivas" - xintoísmo e xamanismo - não tenham sombra de dúvida sobre o fenômeno), imagine só as discussões relativas à reencarnação dos animais. E a dos vegetais, então? Para onde vai o espírito das árvores quando mortas? Voltam para se vingar de Ricardo Salles ou jazem nas cinzas amazônicas pela eternidade e mais um dia? Não há consenso entre os espiritualistas.
Não quero meter minha colher torta nesse caldeirão de cruz-credos. Cada um com o seu cada qual. Mas não tenho culpa se lembro como se fosse anteontem de minha existência como araucária. Um lenho rijo, ereto e inabalável nos contrafortes batidos pelos ventos nos Andes. Uma vida longeva e fecunda, entre guerreiros mapuches e araucanos, ao trinar das gralhas-azuis. Os incréus zombam de mim; já os mestres julgam que, uma vez árvore, ninguém seria rebaixado de novo à condição humana. Vai saber.
Lembro um pouco menos de minha vida como lobo-guará, exceto pelo fato de que nesta finquei menos raízes do que naquela. Creio que havia mais humanos por perto, o que nunca é bom. Foi uma existência fugidia, reticente, crepuscular, quase escusa, vivida do lusco-fusco à aurora. Mas são esses os hábitos da espécie: um lobo solitário, frugívero, fiel quando acasalado, perambulando pelo cerrado, pelas serras, pelos cerros, uivando para a Lua, roçando-se na casca enrugada dos troncos retorcidos, negras estrelas luzindo nas pupilas dilatadas. Auuuuuuu!
Toda essa conversa meio mole meio dura não é só porque o mais nefasto dos ministros do meio ambiente aproveitou-se da pandemia para passar a "boiada" de sua devastação - afetando araucárias e guarás -, enquanto o governo dele oferecia cloroquina para as emas. A relembrança lupina se me ocorreu porque, em meio à economia que se desfaz e à pandemia que se retroalimenta com os negativistas, o desgoverno de plantão anunciou que vai lançar uma nova cédula. E que a nota de R$ 200 trará a estampa... do lobo-guará.
Mas meus devaneios não rebrotaram por causa da suposta homenagem ao "lobo-de-juba". E sim pela frase que ouvi o xamã ianomâmi Davi Kopenawa trovejar com voz mansa: "Brancos derrubam árvores para fazer dinheiro e depois o ilustram com a imagem dos bichos que ficaram sem casa". Por isso, junto-me aos que querem que a nova nota de 200 estampe o vira-lata caramelo. Ou a naja que apareceu em Brasília. Ou a ema que bicou o inquilino do Planalto. Até porque um lobo no galinheiro do mercado financeiro periga fazer um estrago.
EDUARDO BUENO
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