sábado, 19 de junho de 2021


19 DE JUNHO DE 2021
COM A PALAVRA - 

O FILME

DIRA PAES - Atriz, 51 anos Com quase 50 filmes e mais de uma dezena de novelas no currículo, além de prêmios nos principais festivais brasileiros, ela está em "Veneza", longa-metragem de Miguel Falabella que estreou na quinta-feira

Uma das protagonistas da chamada retomada do cinema brasileiro, na virada do século, Dira Paes acumula uma lista heterogênea de personagens em 36 anos de carreira. Um exemplo dessa flexibilidade pode ser conferido nos cinemas: ela vive a prostituta Rita em Veneza, filme de Miguel Falabella que estreou na quinta-feira. A atriz paraense também pode ser vista na reprise da novela Ti-Ti-Ti, que vai ao ar no Vale a Pena Ver de Novo, da TV Globo. No ano passado, ela resolveu ir para atrás das câmeras e dirigiu seu primeiro longa, o ainda inédito Pasárgada. Nesta entrevista, fala sobre seus projetos, suas incertezas durante a pandemia e a atual situação do audiovisual brasileiro, entre outros assuntos.

EM VENEZA, VOCÊ VIVE UMA PERSONAGEM TERNA E SENSUAL. COMO FOI A CONSTRUÇÃO DA RITA?

Me senti privilegiada com o convite, pois o Miguel é um diretor de grandes atrizes. Para mim, foi uma deferência o desejo dele de trabalhar comigo. Miguel falou que, quando escreveu o roteiro, estava pensando em mim. Quando o li, eu me encontrei. Vi ali a dignidade de alguém que vivia em um mundo insólito e violento. O que tem de lindo na Rita é a gratidão a alguém que lhe deu a mão quando mais precisou - a personagem Gringa (interpretada pela atriz espanhola Carmen Maura). Agora, essa pessoa precisa dela, e os papéis se invertem. Acho isso muito bonito, porque hoje a gente está vivendo algo assim, essa relação de cuidar e ser cuidado. Para o filme, procurei fazer um misto do que o Miguel pedia: são mulheres de fronteira, que trabalham em um bordel, mas que, de alguma forma, gostam muito de si mesmas. Ele queria que elas fossem altivas.

COMO FOI SER DIRIGIDA POR MIGUEL FALABELLA?

É um presente. Essa equipe e esse elenco viraram uma família. Passamos um mês em Montevidéu filmando. Depois, tivemos mais uma semana em Veneza (Itália). Miguel fez um filme potente, que tem essa levada do sonho misturada com a realidade. E traz uma leveza de que estamos precisando. Por enquanto, a gente não paga para sonhar. É uma liberdade poder sonhar. É o que temos de mais precioso, ainda mais neste momento. Miguel é um superdiretor. No trajeto entre o hotel e o set, ele já nos dirigia. Até no jantar. É um contador de histórias. Além da cultura, tem uma memória incrível.

NO FILME, TONHO (EDUARDO MOSCOVIS) COMENTA QUE O PESSOAL DO BORDEL DA GRINGA É A FAMÍLIA DELE. UMA REFLEXÃO DE VENEZA É O CONCEITO DE FAMÍLIA? SOBRE O QUE MAIS VOCÊ ACHA QUE O FILME JOGA LUZ?

Esse é um ponto importante. Todo mundo quer, de alguma maneira, o pertencimento. O primeiro pertencimento que a gente costuma ter é a família. Pode ser toda errada, mas é a sua. Você entende aquilo ali. Acho que isso também transparece no filme. Você vê ali que as relações se confundem entre fraternas e sexuais, no caso de Tonho e Rita. Acho que o Miguel lança luz sobre vários aspectos. Exalta a paixão pelo cinema. Fala também sobre intolerância. Precisamos aprender a treinar o nosso olhar, que é muito restrito às vezes. Nós estamos no século 21, todos temos que nos atualizar, de alguma forma. O filme tem uma coisa atemporal, estamos falando de uma fronteira do Brasil, mas você consegue localizar os transtornos, o machismo, a marginalização, como a gente não reconhece a individualidade do outro. Há várias histórias no mesmo filme, tenho certeza de que o público vai se identificar com alguma delas.

VOCÊ ESTÁ NO AR NA TV COM A REPRISE DE TI-TI-TI (2010). O QUE VOCÊ GOSTA DE LEMBRAR DESSA NOVELA?

Marta vem depois da Norminha, de Salve Jorge (2012). Eu precisava desse contraponto. Ela era o contrário da Norminha. Tive o prazer de ter esse encontro com o Jorge Fernando (1955-2019). Estivemos juntos em Verão 90 também, antes de ele partir. Agora estou revendo com um olhar de amor pelo Jorge. Toda vez que falo de Ti-Ti-Ti eu lembro dele. É a lembrança que estou gostando de alimentar, de matar a saudade. Ele era muito cheio de energia. Teria ainda muito a nos dar, deixou um legado incrível. Em Ti-Ti-Ti, foi incrível contracenar com o Murílio Benício. Quando a gente faz novela, o gostoso é pensar com quem contracenamos naquele dia. Isso para mim sempre foi estimulante.

VOCÊ TEM UM LEQUE DE PERSONAGENS HETEROGÊNEOS. QUAIS CRITÉRIOS UTILIZA PARA ESCOLHER OS TRABALHOS DOS QUAIS VAI PARTICIPAR?

É paradoxal: todos os critérios e nenhum (risos). Às vezes, pode ser uma empatia ou aposta total naquela pessoa que lhe trouxe o roteiro e você não conhece. Você não sabe quem é o diretor ou com quem vai contracenar, mas se apaixona pela história. Fiz muitos filmes assim. Outro critério é tentar trazer uma diversidade que me alimente como artista, buscar outros estilos. Nos meus primeiros anos de carreira, eu simplesmnete trabalhava. Era uma aprendiz, nunca achava que estaria perdendo topando um filme.

ERA O MOMENTO DE GANHAR EXPERIÊNCIA.

Poxa, foi maravilhoso. Trabalhei com John Boorman (em Floresta das Esmeraldas, 1985) e nos primeiros longas de diretores. Arrisquei. Mesmo não sendo a personagem mais legal do mundo, eu queira aquele encontro. Então, apostava naquele trabalho. Sigo apostando.

HÁ ANOS HÁ UMA DISCUSSÃO MUNDIAL SOBRE A FALTA DE BONS PAPÉIS PARA MULHERES ACIMA DOS 40 ANOS. SOBRE O ASSUNTO, EM ENTREVISTA A ZH, EM 2017, VOCÊ DISSE: O RETRATO DA MULHER DE MEIA-IDADE QUE JÁ ABRIU MÃO DAS SUAS CONDIÇÕES FEMININAS NÃO EXISTE MAIS. DE LÁ PARA CÁ, MUDOU ALGUMA COISA?

Você vê que essa questão de gênero não diz respeito a um suposto Terceiro Mundo. Em 2015, a Patricia Arquette ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante e fez um discurso feminista no Oscar (pedindo equiparação salarial com os homens, entre outros temas), com a Meryl Streep levantando, batendo palmas e falando: "Yes!". Aquilo ali era Hollywood, querendo a mesma coisa que nós no Brasil. Hoje, a grande mudança é a velocidade da informação. Não tem como voltar atrás: quando a gente começa a ter entendimento do que é igualdade de gênero, do que é o papel da mulher no século 21, compreende a importância de termos políticas direcionadas. Nós mulheres somos a base da sociedade, somos grandes consumidoras, temos mais responsabilidades familiares e somos subjugadas com menores salários, sem oportunidades de cargos de chefia. Demoramos demais a discutir igualdade de gênero. Mas o discurso da Patricia Arquette surtiu muito efeito. Acho que o que estamos vivendo agora é uma tentativa de disseminar a ideia de que feminismo não é uma alcunha negativa. Ser feminista é ter consciência de direitos e deveres. Com certeza, devemos lutar pela igualdade de gênero. Nós somos todos seres humanos e precisamos dividir tudo com igualdade.

COMO VOCÊ SE DESCOBRIU FEMINISTA?

Ah, muito cedo. Tive um discernimento que me foi despertado na adolescência, antes de ser atriz, em relação aos direitos humanos. Sou paraense. Venho de uma terra de belezas naturais e riquezas culturais que não existem em nenhum lugar do mundo, mas que é também um lugar de conflitos, de exploração e esgotamento dos recursos naturais. Quem tem sensibilidade a temas ligados aos direitos humanos acaba despertando cedo para essas questões. Ainda não era uma pessoa famosa, mas já tinha minha autoestima definida em torno da minha individualidade. Também é quando você sensibiliza o olhar para o outro. A alteridade alimenta a atriz, porque gosto de gente, de trocas, de conversar olhando no olho.

NOS ÚLTIMOS ANOS TAMBÉM FORAM TRAZIDOS À TONA RELATOS DE ASSÉDIOS NO UNIVERSO DO CINEMA. EM ENTREVISTA AO O GLOBO, VOCÊ COMENTOU QUE JÁ TEVE EXPERIÊNCIAS DESAGRADÁVEIS COM DIRETORES, ASSÉDIOS VERBAIS, MAS QUE SE DEFENDEU TODAS AS VEZES, INSTINTIVAMENTE. O ASSÉDIO DIMINUIU COM AS DENÚNCIAS?

O assédio existe e continua em um alto grau, porém, estamos também lutando bravamente para lançar uma consciência comportamental que não parta dessa ambivalência de gênero. Queremos que as pessoas cresçam entendendo a importância do respeito. Acho que os movimentos só se estabelecem de fato quando eles começam na base. E a base da nossa sociedade tem um número muito grande de pessoas abaixo da linha da pobreza. Há muitas pessoas que precisam se fortalecer para que aí sim tenham visibilidade para essas questões. Na minha trajetória no Movimento Humanos Direitos, a gente lança luz sobre causas, sobre situações que infligem os direitos humanos, mas as mudanças só vêm, na prática, quando há alterações legislativas. A transformação é um processo longo.

QUANDO VENEZA FOI EXIBIDO NO FESTIVAL DE GRAMADO, EM 2019, FALABELLA LEU A CARTA DE GRAMADO, DOCUMENTO ASSINADO POR ENTIDADES DO AUDIOVISUAL CONTESTANDO EPISÓDIOS DE CENSURA E CRITICANDO O GOVERNO FEDERAL. COMO VOCÊ OBSERVA A SITUAÇÃO?

Infelizmente, no atual governo, os artistas são tratados de uma forma que não é respeitosa. Não temos diálogo com a Secretaria Especial da Cultura, não há projeto para um mercado bem-sucedido de cinema brasileiro. O governo desinforma o público em relação à Lei Rouanet. E somos uma classe imensa, que gera uma receita incrível para a economia nacional, além de pagarmos impostos. Mas vamos seguir. Nossa profissão atravessou séculos e séculos. E persiste, independentemente dos governos.

RECENTEMENTE, HOUVE FORTE DEBATE NAS REDES SOCIAIS QUANDO JULIANA PAES AFIRMOU NÃO APOIAR NEM A EXTREMA-DIREITA, NEM A EXTREMA-ESQUERDA E SAIU EM DEFESA DE NISE YAMAGUCHI, MÉDICA DEFENSORA DA CLOROQUINA QUE ACONSELHA JAIR BOLSONARO. O QUE VOCÊ ACHOU DESSE EPISÓDIO?

Juliana é uma mulher adulta e responsável. Ela se manifestou e tem o direito de se expressar. Usou a rede social para conversar diretamente com seu público, provavelmente sabendo que isso ia causar muitas discussões. Foi o que a Juliana quis fazer e tem esse direito. Ela assuntou uma discussão, que, se a gente olhar por outro lado, foi ótimo para termos a oportunidade de explicar o que é direita e o que é esquerda. O debate é sempre saudável.

COMO VOCÊ TEM LIDADO COM A PANDEMIA? PRECISOU MUDAR ALGUM HÁBITO? TEVE ALGUMA PRIORIDADE QUE ACABOU REVENDO?

Um misto de tudo isso. Cada dia é um sentimento. A pandemia despertou um espírito de coletividade que se estabeleceu mesmo com as pessoas a distância. Acho que está sendo importante podermos lamentar cada vítima juntos, em uma grande corrente de solidariedades. O que não podemos aguentar mais é a ausência de atitude do governo federal em relação a essa mortandade. É um momento mórbido, que vem junto com a violência contra os pobres, os pretos e os índios e o desmatamento na Amazônia. É muita coisa. A gente precisa ter atitudes a favor da vida. É disso que o Brasil está precisando.

VOCÊ RECEBEU A PRIMEIRA DOSE DA VACINA EM MAIO. COMO SE SENTIU?

Tenho asma crônica desde os 22 anos. Foi uma sensação estranha. Não consegui ficar feliz.

NEM UM ALÍVIO?

Até deu. Mas quantos por cento da população está vacinada, gente? Temos mais de um ano de pandemia. E esse número exorbitante de mortos. É preciso que tenhamos mais vacinas! É muito constrangedor o que está acontecendo, se você pensar que temos uma das maiores populações mundiais, somos um país exuberante, com tantos recursos naturais. O que está acontecendo com a gente? Estamos vivendo um processo retrógrado. Nos tornamos intolerantes. O Brasil adoeceu.

VOCÊ TEM COMENTADO A CERIMÔNIA DO OSCAR NA GLOBO DESDE 2018. NESTE ANO, A PREMIAÇÃO FOI DIFERENTE DEVIDO À PANDEMIA. O QUE VOCÊ ACHOU DO OSCAR 2021?

Achei que eles foram bravos guerreiros. É preciso resistir. Tive um olhar diferente daquele que, me parece, todo mundo teve. Acho que o Steven Soderbergh (diretor da cerimônia) trouxe o Oscar para a nossa casa de uma maneira singular. Nós conseguimos ver os artistas com saudades uns dos outros. Vimos aquele reencontro. Estavam todos muito contentes, desarmados, mais humanos e menos semideuses, como costumam ficar no Oscar. E mais uma vez a Academia de Hollywood veio mostrar que quer a diversidade, que quer os filmes do mundo inteiro. A pluralidade vem sendo alimentada cada vez mais. Como foi tardio esse despertar da Academia! Desde que comecei, em 2018, vejo uma progressão nessa abertura para o mundo.

COM MAIS DE 35 ANOS DE CARREIRA, VOCÊ NÃO PRETENDE IR PARA TRÁS DAS CÂMERAS EM ALGUM MOMENTO? TEM PLANOS DE SE TORNAR DIRETORA?

Pois é. Tem gente que fez filho na pandemia, já eu fiz um filme com meu marido (risos). Eu e Pablo (Baião) somos casados há 16 anos, e talvez nunca tenhamos tido tanto tempo juntos como nesse período. Tivemos espaço para criar um projeto chamado Pasárgada, inspirado num poema de Manuel Bandeira. Esse desejo do lugar utópico, onde tudo é possível, onde você é livre, é amigo do rei (risos). Acabei me envolvendo desde o primeiro momento, escrevendo roteiro, consultando pessoas sobre argumento, produzindo, dirigindo, interpretando. Foi uma experiência bem intensa. O filme não fala da pandemia diretamente, mas se passa dentro de uma locação do Arraial do Sana, na Mata Atlântica do Rio de Janeiro. É a história de uma bióloga que vai fazer uma pesquisa nessa região. Estou curtindo cada etapa desse processo.

O FILME ESTÁ EM QUE ETAPA DE PRODUÇÃO?

Estou procurando ainda o corte que gostaria de mostrar para as produtoras associadas, para ter as primeiras sessões com público. Ainda precisa haver um trabalho de edição de som. Então, acho que levará um tempo ainda de feitura.

E VOCÊ ESTARÁ NA NOVA VERSÃO DA NOVELA PANTANAL. ONDE MAIS PODEREMOS LHE VER?

Ainda não está definida a data, mas em breve mas teremos o lançamento do longa-metragem Pureza (de Renato Barbieri), em que eu trabalhei. Tem ido muito bem nos festivais internacionais. Estarei em Pantanal fazendo a Filó, que foi interpretada pela Jussara Freire na outra versão. É um projeto pelo qual estou muito encantada. Vai até julho do ano que vem. Começaremos a gravar em agosto. Acho que não posso nem desejar mais projetos, vou estar bem envolvida com a novela nos próximos meses (risos).

- Coestrelado por Dira Paes, Carol Castro, Eduardo Moscovis, Danielle Winits, Caio Manhente, Roney Villela e Miguel Falabella, escrito e dirigido por este último, "Veneza" é uma comédia dramática sobre o sonho de uma dona de bordel que está cega e doente (interpretada por Carmen Maura) e que tem como último desejo viajar à cidade italiana do título para pedir perdão ao amante que abandonou décadas atrás.

- Trata-se do segundo longa-metragem dirigido por Falabella, ator, autor e diretor de teatro, cinema e televisão que antes assinou o longa Polaroides Urbanas (2008).

- Produção da Globo Filmes, o longa levou o Kikito de melhor direção de arte no Festival de Gramado de 2019. Teve a estreia adiada por conta da pandemia e só entrou em cartaz na última quinta-feira nos cinemas brasileiros. Veja onde assisti-lo em Porto Alegre no roteiro do caderno Fíndi.

WILLIAM MANSQUE

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