domingo, 27 de junho de 2021


26 DE JUNHO DE 2021
ELIANE MARQUES

O MAL-ESTAR DE AQUILES (DE SOUSA)

Não somos criaturas ternas que atacam apenas em defesa própria. Estamos mais para causar sofrimento, martírio e morte do que para amar o próximo. Segundo Freud, nosso destino será decidido pela condição de até que ponto a vida na cultura suportará os solavancos das pulsões de agressão e de autodestruição. Discutido por ele em O Mal-estar na Cultura (1929-1930), o tema se torna urgente nesta época de desprestígio da palavra e de avanço das imagens mercadológicas com as quais disfarçamos nossa falta estrutural. Fala muito bem disso Cartola de Sousa, que, com o filho Aquiles apoiado na anca, tentava tapar com a mão o calcanhar defeituoso dele em Luanda, Lisboa, Paraíso, da escritora angolana Djaimilia P. de Almeida.

Em Totem e Tabu (1913), o filho da psicanálise conjetura que a humanidade teria partido da horda primitiva, em que a vontade do chefe era ilimitada, às alianças fraternas, mais fortes do que um indivíduo, regidas pela lei simbólica no bojo da qual a vida em comum se tornaria melhor. Desde então se esperaria que, no transcurso histórico, se cumprisse, sem tropeços, a inclusão de um número maior de pessoas no que se chama humanidade. Por isso não se compreenderia como a cultura, que permitiu vida melhor, agora seria causa de sofrimento.

A agressividade vista no outro, mas disfarçada em nós, a exemplo de Cartola a esconder o calcanhar de Aquiles, é o que perturba as relações sociais. À cultura se impõe esforços para o fim de contê-la. O preceito de amar o próximo como a si mesmo, tão inútil como os demais em lograr mudanças face à agressividade, pródiga em inventar rivais para se justificar, constitui um desses esforços.

Para viver a vida de cultura se impõe a renúncia à satisfação das tendências agressivas. Contudo, tal renúncia ocorre cada vez mais entre os membros de um grupo restrito e privilegiado mediante a destinação de sua hostilidade aos considerados estranhos, anormais, outsiders; afinal, certas pessoas sempre poderão se proteger entre si com a condição de que sobrem outras em quem descarreguem os golpes.

Um antigo inconformismo constituiu o terreno em que circunstâncias históricas fizeram germinar a condenação da cultura. Para Freud, o último deles foi o contato dos europeus com povos aos quais atribuíram uma vida plena de felicidade que supostamente seria a eles inalcançável e que, talvez, por isso, digo eu, tentaram destruir, ainda que essa felicidade plena estivesse apenas em suas fantasias de (in)civilizados.

ELIANE MARQUES

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