28 DE JUNHO DE 2021
CÍNTIA MOSCOVICH
As muitas formas de inferno
Formado por dois planos narrativos, com um livro se desenvolvendo dentro do livro, Fé no Inferno (Companhia das Letras), o novo romance do paulistano Santiago Nazarian, se ocupa, entre outros, do genocídio armênio, massacre que vitimou mais de 1,5 milhão de almas durante a Primeira Guerra. Ao mesmo tempo, a narrativa também trata do convívio entre distintos, das dores do envelhecimento e da doença, do preconceito e da violência contra gays e dessa estranha diáspora em que vivem todos os que são tidos como desviados.
Escritor de veia pop, com várias premiações no currículo e tradutor de mão cheia - é dele a recente tradução da biografia de Woody Allen -, Nazarian articula a história de forma engenhosa, recheando-as de símbolos. A trama se inicia em 2017, quando Cláudio, um rapaz gay, pobre e neto de indígenas, inicia um emprego como cuidador de idosos numa mansão nos Jardins, em São Paulo.
Seu Domingos, o homem de quem ele tem que cuidar, passa os dias sozinho, lendo e tomando notas instalado em sua babélica biblioteca, aquela em que os livros são todos encadernados em couro, sem títulos ou indicação de autor. De poucas palavras, o homem quer silêncio e oferece ao jovem um dos livros. Cláudio inicia a leitura, o que vem a dar origem ao segundo plano narrativo do romance e que envolve um menino sobrevivente do massacre praticado pelos turcos, cuja fuga, espetacular, é contada de forma alegórica e cheia de maravilhas.
Ao mesmo tempo, o cotidiano de Cláudio é colocado em evidência: de um emprego a outro, ele vive no apartamento do namorado, nem sempre o melhor lugar do mundo. Tentando cuidar de seu paciente da melhor forma possível, o rapaz se defronta com a degradação da saúde de seu Domingos, que passa a sofrer com lapsos de memória e de incontinência. Os vínculos de amizade entre eles dois se criam de forma natural (e se pode até lembrar de Os Intocáveis e da dupla François Cluzet e Omar Sy), ao mesmo tempo em que o mistério, acentuado pela senilidade e pela doença, só faz ganhar corpo até o desfecho inesperado.
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