11 DE JUNHO DE 2021
DAVID COIMBRA
A pandemia nos faz lavar louça
Tenho lavado muita louça. Não é uma atividade que me apraz, embora não me faça sentir ojeriza. Já a odiei, confesso. Hoje, não mais. Hoje, lavo uma louça conformado. Sem reclamar. E sem júbilo.
Sei que há pessoas que adoram lavar louça. Elas dizem que esse é o momento em que pensam na vida. O corpo se ocupa de um trabalho que dispensa a criatividade, e a mente se deixa vagar. Meu avô, que era sapateiro, afirmava que a atividade manual tem essa propriedade de liberar o pensamento. Ele batia uma meia-sola e filosofava.
Bem. Eu não preciso de um trabalho manual para pensar na vida. Estou sempre pensando nela, sem conseguir compreendê-la - ela vive me surpreendendo. Então, não me importaria de pagar uma pessoa para lavar a louça por mim. Até porque não tenho preconceito contra empregados domésticos. Não acho que seja escravidão ou coisa que o valha. É um trabalho tão digno quanto qualquer outro.
Vejo gente comparando o esquema do empregado doméstico com a casa grande e a senzala dos tempos da escravidão, dizendo que só no Brasil isso acontece, que lá fora as pessoas lavam sua própria louça com orgulho. Que bobagem. É verdade que, nos Estados Unidos, poucas pessoas contratam domésticas, mas não é por consciência social; é porque é caro. Uma faxina básica, de três horas de duração, custa entre 80 e 120 dólares.
Em Massachusetts, esses chamados "trabalhadores da limpeza" são, em sua maioria, brasileiros. Imagine: uma faxineira que cobra 100 dólares por turno pode fazer duas faxinas por dia. Ou: 200 dólares. Se trabalhar cinco dias por semana, são 4 mil dólares mensais, um pouco mais do que 20 mil reais.
A faxineira faz lá o mesmo que faria aqui. Só que, lá, ela ganha 10 vezes mais. Em resumo, não tem nada a ver com escravidão blá-blá-blá, tem a ver com o mercado de trabalho e com a forma como o trabalho é visto.
Aí é que está: a forma como o trabalho é visto. Os americanos não têm preconceito contra tipos de trabalho. No supermercado que mais frequentava, o Trader Joe?s, vários dos caixas e atendentes eram senhores e senhoras da comunidade. Estavam ali para ganhar um dinheiro extra, quem sabe para completar a aposentadoria, e trabalhavam com grande alegria. Era bom ser atendido por eles.
Outra: um dia, estava numa rua central da cidade e vi que o gari vinha varrendo da esquina. Havia muitas pessoas paradas na calçada. Ele se aproximava com sua vassoura e, ao chegar perto de alguém, dizia:
- Pode se afastar, por favor?
Falava isso não como um pedido, e sim como uma determinação. As pessoas se afastavam rapidamente, pedindo desculpas. Ele, naquele momento, era a autoridade. E o que lhe conferia autoridade? O trabalho que exercia. As pessoas respeitavam o trabalho dele.
Já o Brasil é atormentado por um defeito que vem dos tempos do Império: na época, trabalhar era atividade para os escravos, nunca para os senhores. Os brasileiros sentiam vergonha de trabalhar. Há relatos de ingleses que viviam no Rio e ficavam embasbacados com o comportamento da população local. Por exemplo: se um inglês precisava do serviço de um chaveiro e o chamava à sua casa, esse profissional, antes de se deslocar a fim de atender o cliente, contratava um escravo de ganho para carregar sua caixa de ferramentas. Era uma caixa leve, fácil de carregar, mas se o chaveiro fosse visto fazendo isso, ele seria comparado a um escravo.
Desde então, certos trabalhos, no Brasil, são considerados como de segunda categoria.
Pois o degas aqui não pensa desta forma. Respeito qualquer trabalho. São todos importantes, entre eles o de arear panelas. Digo até que quem nunca areou uma panela não sabe de fato como a vida é. Areie você também, e cresça como pessoa. Mas eu não preciso disso. Sem preconceito algum: esse método filosófico não é para mim.
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