sábado, 19 de junho de 2021


19 DE JUNHO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

AS NINFAS MUTILADAS DO CAIS

Há por trás do muro e dos trilhos uma praça abandonada, entre ruínas, onde jazem memórias e poéticas de uma cidade que já foi e sempre pode ser bela. Nessa praça, emanam graça duas lindas ninfas que o escultor Adolf Adloff (1874-1949) extraiu da pedra, escoradas na bacia de uma fonte, cercadas por 14 palmeiras. De costas para as águas e hoje mutiladas, tal como esta Porto Alegre, essas ninfas são bom símbolo da incúria com que maltratamos bens preciosos; estão na área do cais, o local predileto para abandonos e perdas deste Estado e desta cidade. Elas miram a selva de pedra e insinuam o pensamento: por que e até quando vamos desdenhar a beleza, o patrimônio, a memória e a história e massacrar as potências da poesia e da inteligência com a violência insensata e insensível da tecnocracia?

As estátuas são parte da Praça Edgar Schneider (1893-1963), alusiva ao jurista, parlamentar e professor que foi reitor da UFRGS (então UPA, Universidade de Porto Alegre) entre abril de 1942 e setembro de 1943, quando renunciou devido a divergências quanto à autonomia - boa lembrança, no momento em que nossa universidade é novamente agredida. 

Essa praça situa-se no limite entre o Cais Mauá e o Cais Marcílio Dias, próximo à rodoviária, em área sem função e com circulação restrita; está ligada ao Canal Navegantes, parte do Delta do Jacuí, que junta águas dos rios Caí, Gravataí e Sinos, muito poluídos - a catástrofe que teimamos em esquecer e esconder atrás do muro; logo adiante, essas águas formam o lago Guaíba, um dos maiores fenômenos hídricos do Hemisfério Sul. Desse ponto, situado diante do canal entre as ilhas do Pavão e Chico Inglês (não sou eu!), até a ponta do Gasômetro, estende-se o Cais Mauá e, com ele, os armazéns que delineiam a fachada de Porto Alegre, o maior patrimônio tombado da capital do Estado, rigorosamente abandonados e degradados, na regra simbolizada pelas ninfas mutiladas.

As ninfas são a memória artística de entidades que os gregos imaginaram para representar as forças vitais de elementos benéficos, como fontes, bosques e recantos; nymphé, em grego, quer dizer noiva, ou seja, jovens na flor da idade, com graça e leveza coreográfica. Esses atributos aparecem com toques modernos nessa obra de Adolf Adloff, artista nascido em Düsseldorf e que atuou até 1940 em Porto Alegre, onde deixou belas obras públicas, especialmente no Cemitério da Santa Casa. O lindo recanto com as duas ninfas pede para ser restaurado e retomado para a cidade, ajudando a nos reconectar com aquele cenário privilegiado, suas águas, memórias e visões do espaço e do tempo.

A área do cais vem sendo vilipendiada há muitos anos. Pairam ainda sérias ameaças, sobretudo quanto à voracidade desmedida dos especuladores imobiliários, que cativam com facilidade políticos e tecnocratas liberais, contra o interesse público. Mas há também a força de princípios e inteligências atentas, que sonham com democracia e a graça de fontes com ninfas reanimadas em nossas margens.

FRANCISCO MARSHALL

Nenhum comentário: