domingo, 27 de junho de 2021


26 DE JUNHO DE 2021
CLAUDIA TAJES

500 mil não é um número

As 500 mil vítimas da covid no Brasil, a gente sabe, são muitas, muitas mais. Todos os filhos. As mães. Os pais. Os companheiros. As companheiras. As famílias. Os amigos. Quem trabalhava junto. Quem empregava. Quem dependia. Todo mundo que perdeu alguém por covid é vítima também.

500 mil. Esses dias, o moço do Uber disse que não se deve acreditar totalmente nos números. Concordei, os números são maiores, eu disse, é certo que há subnotificação. Ele tirou o nariz da máscara para me responder melhor: "Não, dona, eles mentem para mais". O sogro do meu irmão, que é militar, disse que enchem os caixões de pedras para enterrar. É assim que eles ganham dinheiro.

Seriam tantas as perguntas a fazer que preferi esconder ainda mais a cara na máscara e encerrar o assunto. Quem mente para mais? Quem enterra pedras, e onde? Quem são os "eles" que ganham dinheiro com isso?

Mas o motorista queria papo. Na sequência, passou a xingar a máscara, dizendo que ela não serve para nada e que só usa dentro do carro para não se incomodar. Vai que algum passageiro denuncie. No resto do tempo, não usa. Já tive covid, falou, e me curei com Azitromicina. Estou garantido. Não vou nem me vacinar.

Ele se sente respaldado. A maior autoridade do país não usa máscara. Até o ex-ministro da doença foi a um shopping com a carinha gorducha totalmente exposta. Cada vez que um sujeito desses nega o perigo em público, mais gente compra a ideia.

E morre mais gente também.

No outro fim de semana, vi na televisão uma matéria com vários brutamontes que, não satisfeitos em andar com a boca e o nariz para fora, ainda moem de pancada os funcionários das lojas que pedem - educadamente - para eles colocarem a máscara. A que ponto chegamos. Quem achava que o desembargador de Santos, aquele que humilhou o guarda municipal, era o cúmulo da grosseria e da violência, ainda vai ver muita grosseria e violência. Na TV e na vida.

Abri um pouco mais o vidro e recorri ao celular, companhia valiosa na hora em que a gente escolhe se isolar do mundo, ou ao menos deseja fingir um confortável alheamento. O motorista continuou falando.

Era um rapaz de nem 30 anos com um filho de 14, evidentemente que as coisas não foram fáceis para ele. Odiava estudar, não terminou o colégio e não se arrepende. Gosta de dirigir, está na profissão certa. Se há coisa que ameniza a dureza desses dias é isso, ter um trabalho e, de bônus, gostar do que se faz.

Apesar das dificuldades de uma vida batalhada, mesmo assim não acho que o negacionismo dele se justifique. São inúmeras as possibilidades de informação, muitas e muitas fontes diferentes para se recorrer, e tirar a prova. Ler uma notícia confiável leva tanto tempo quanto abrir o manifesto mal escrito que alguém postou no grupo da família. As escolhas, ah, as escolhas. O resultado delas nos persegue e determina o que será de nós, como indivíduos e como país. As urnas de 2018 não me deixam mentir.

Quinhentos mil. Em uma semana particularmente doída, um alento foi ouvir a Conceição Campos, vacinada pelo próprio ministro Marcelo Queiroga em uma ação de vacinação em massa em parceria com a Fiocruz na Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro. Entrevistada, Conceição não amarelou:

- A vacina é verdadeira, mas a mão que me aplicou não é. Essa sensação foi muito forte para mim. De estar recebendo uma vacina pela mão de um representante do governo que não fala bem da vacina, que não defende a máscara, que não defende o distanciamento social. Soa muito falso.

Quinhentos mil é um número marcado na nossa história para sempre. Mas, quem sabe, com mais Conceições e menos meninos de miolo mole, menos políticos faturando com a ignorância e menos médicos anticiência, a gente possa parar de contar.

Falando nisso: Quase Oração é uma ação coletiva que conta com a participação de dezenas de brasileiros se revezando para contabilizar os números das vítimas fatais da pandemia. Infelizmente, é possível acompanhar essa triste contagem ao vivo no Instagram @quaseoracao. Que chegue logo ao fim.

CLAUDIA TAJES

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