sábado, 12 de junho de 2021


12 DE JUNHO DE 2021
ELIANE MARQUES

O MANTO SOBRE O AMOR E A MORTE

A artista Mitti Mendonça participa da exposição Afeto Presente com 10 retratos bordados em linha. A visitação, na Galeria Ecarta, vai até 11 de julho. A mão de Mitti atua como lápis sobre folha trazendo à presença mulheres ancestrais, algumas com rostos inquiridores, mas todas cobertas pelas linhas do amor-manto que as torna vívidas. No momento em que França e Alemanha reconhecem ações ou omissões em genocídios no continente africano, a bordadura de Mitti me enlaça ao amor- manto, agora tecido pela autora de Baratas, entre outros.

"Quando eu morrer, quando vocês perceberem que eu morri, cubram o meu corpo. (...). Vocês, que são minhas filhas, têm a obrigação de cobri-lo..." Ainda que não alcançasse o sentido da súplica, Scholastique Mukasonga estava pronta para cobrir com um pano o corpo de sua mãe caso a morte, que rondava os tutsis deportados para Nyamata, viesse buscá-la.

Os tutsis eram de tradição pastoril; os hutus, de pele mais escura e menor estatura, de tradição agrícola. A partir da colonização alemã, as diferenças entre eles foram instrumentalizadas como inimizade. Os alemães escolheram a pele menos escura dos tutsis para cargos de administração, treinamento militar e acesso exclusivo à educação, uma vez que, para impedir o ingresso dos hutus, as escolas exigiam estatura mínima.

Com a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, os belgas dão continuidade à política de inimizade até 1962, quando Ruanda conquista a independência sob domínio hutu. Acuados, os tutsis se refugiam e, em Uganda, organizam sua reação. O conflito se intensifica a partir de abril de 1994, quando os presidentes de Ruanda e Burundi, hutus, são mortos em um atentado, o que foi o estopim para o assassinato de cerca de 1 milhão de pessoas.

Nessa contextura, Mukasonga não pôde realizar o desejo da mãe. Seu corpo mutilado por facões embriagou hienas e cães. Seus restos se perderam na pestilência da vala comum do genocídio. Tendo fugido para a França, num plano urdido pela família, a Mukasonga restou cobrir o corpo materno com palavras tecidas e retecidas na mortalha da ausência. Esse tecer e retecer um manto de palavras remete ao movimento de Mitti com a agulha e a linha. Tanto ela como Mukasonga estetizam narrativas sociais que, embora diversas, dependem dos movimentos de lápis e agulha para saírem do fundo da gaveta familiar e se tornarem públicas.

Stefania, o nome da mãe de Mukasonga. Prima Nina, o nome da obra de Mitti que mais me olha e fascina.

ELIANE MARQUES

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