terça-feira, 4 de outubro de 2016



04 de outubro de 2016 | N° 18651 
DAVID COIMBRA

A grande dor das coisas que passaram

Uma das mais belas frases da língua portuguesa foi escrita há cinco séculos pelo caolho Camões. Tão linda, que, mais de 400 anos depois, Drummond a reciclou e a engastou em um poema. É uma oração simples, incompleta, até, considerando-se a ortodoxia gramatical. Mas é tocante. Esta:

“A grande dor das coisas que passaram”.

Aí está algo que qualquer ser humano entende sem nem precisar de verbo. Porque basta estar vivo para sentir a grande dor das coisas que passaram. Você olha para trás e vê momentos da sua vida que não se repetirão, vê pessoas com quem jamais estará outra vez e, principalmente, vê quem você nunca mais será, e sofre. Se não a Grande Dor, alguma dor.

Mas existe analgésico para esse padecimento. É o tempo presente.

No domingo mesmo, via a reprise de um comovente filme americano, As vantagens de ser invisível. Na cena final, que dá sentido à trama, o protagonista fala sobre estar vivendo “agora”.

– Isso está acontecendo neste momento – ele diz.

E começa a rodar um clássico de David Bowie, Heroes, em que o meu xará britânico canta:

“Nós podemos ser heróis

Nem que seja por um só dia”.

Então, tudo se amarra: você está vivendo aquele dia, aquele exato instante e está sorvendo o máximo que aquele segundo pode lhe dar. Significa que você está sendo herói da sua própria vida naquele pedaço de tempo e que, por ter sido tão marcante, ele será lembrado mais tarde, talvez com doçura, talvez com dor, ou até com a grande dor das coisas que passaram.

Você dirá que estou tentando poetar numa terça-feira, o que é inconveniente. Não se trata disso. Trata-se de algo concreto, tão concreto, que se expressa em pedra e cimento: a cidade.

Sou porto-alegrense da Zona Norte profunda. Em meus pulmões, se não há fumaça de cigarro, que nunca fumei, há do escapamento dos carros da Assis Brasil, a avenida mais comprida e mais cinzenta da cidade. Admito que aquelas paragens não são exatamente bucólicas, mas você pode descobrir muito canto aprazível entre os prédios desbotados do pequeno comércio que abastece as famílias de trabalhadores do lugar.

Eu e meus amigos de infância crescemos vagabundeando por aquelas ruas. Sabemos o que existe de bom debaixo de cada toldo de armazém, sabemos onde morava cada flor do subúrbio. Muito daquele tempo ainda resiste.

Até hoje, o Ivan Pinheiro Machado, que não é do IAPI, é da Santa Cecília, pois o Ivan, quando quer trinchar uma picanha honesta e repimpar-se com uma das melhores saladas de batata do Hemisfério, aonde ele vai?

Ao Espeto de Ouro, bem ali, dobrando a Volta do Guerino.

Diz o Ivan que o velho garçom Marquinhos sempre pergunta por mim. Não por acaso – eu ia sempre ao Espeto de Ouro. Era vizinho. Morei perto, num minúsculo JK, entre o antigo Hospital Lazzarotto e o Estádio do Zequinha, clube do qual meu avô era orgulhoso sócio-proprietário e onde marquei apenas dois gols, mas dei 55 lançamentos precisos, estilo Roberto Rivellino, no pé do Jorge Barnabé, o que não é rima, é fato.

Vou contar como era aquele apartamento. Mas só amanhã, tenha paciência, apressado leitor.

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