domingo, 16 de outubro de 2016

Leia trecho de narrativa inédita de Marçal Aquino

MARÇAL AQUINO - 16/10/2016  02h02
ilustração JAN LIMPENS


SOBRE O TEXTO O trecho abaixo faz parte da narrativa "Como se o Mundo Fosse um Bom Lugar", integrante da coletânea "SP Noir", que a Casa da Palavra lança em novembro. Em 2017, o texto será adaptado para o cinema por Aquino e pelo diretor Beto Brant.

Jan Limpens

O velho Ambrósio arrastava, com impaciente resignação, a carcaça meio avariada rumo aos 80 anos, quando cruzou seu caminho uma ruiva suburbana, cuja existência o Censo havia registrado apenas duas vezes até a época em questão. Por causa dela, Ambrosião, que já vinha transferindo o comando dos negócios para o filho e se preparava para uma aposentadoria tranquila ao lado da mulher inválida, voltou à tona. Reviveu. Mandou polir a dentadura, como fala o povo dos velhinhos que tornam a se assanhar com a vida. Começou a cultivar a vaidade: fez implante de cabelo, pintou os fios remanescentes e o bigode de um caju-canalha, comprou aquela cinta de disfarçar a barriga –para não falar de banhos, colônias e loções.

O homem capaz de usar a mesma roupa por dias seguidos, de uma hora para outra passou a se interessar por camisas de grife, calças sob medida e sapatos caros que apareciam em anúncios de revistas. Eu mesmo o acompanhei em diversas incursões por lojas de shoppings, de onde saía, feliz feito uma dondoca consumista, carregado de caixas e sacolas coloridas. Chegou a contratar uma bichinha para tomar aulas de bons modos.

Uma metamorfose impressionante.

Tudo na vã tentativa de obter o apreço de alguém que, para falar a verdade, não valia o esforço de cortar as unhas do pé. Uma criatura que, se passada por um espremedor, não verteria uma gota de afeto por ninguém.

Uma cadela vulgar e ardilosa, que conhecia mais truques do que mágico de navio de cruzeiro, dizia dela Ambrosinho. Os dois se detestaram desde a primeira vez em que se viram.

Natural. O surgimento da moça freou a ascensão de Ambrosinho. Revigorado, o velho reassumiu os negócios, e ao filho só restou enfiar o rabo entre as pernas e voltar à condição coadjuvante. Ele não gostou. Ninguém gosta.

Uma vez, no carro, a caminho da festa do peão em Barretos, Ambrosinho soltou essa:

Um galo pra quem der sumiço na ruiva. (Um galo = 50 mil no dialeto da classe.)

Silêncio não tirou o olho da estrada, firme no volante. Quero este carro, eu disse.

E me virei no assento para ver se Ambrosinho falava sério. (Ele morria de ciúme da Mercedes, não gostava de deixá-la na mão de manobristas, só confiava em Silêncio.)

De chapéu e sem camisa, trincando de pó entre duas vagabundas fantasiadas de vaqueiras, Ambrosinho riu seu riso balofo. E nem parou para ponderar:

Fora de questão. Dou o dinheiro e você compra o carro que quiser, ora.

Silêncio diminuiu a velocidade quando passamos por um posto da Polícia Rodoviária. Ambrosinho pediu a uma das mulheres que baixasse o vidro, tocou a aba do chapéu, fez revólver com o polegar e o indicador, mexeu com os rapazes que fiscalizavam o tráfego na rodovia. Os policiais devem ter pensado:

Mais um babacão endinheirado. Mas sorriram, satisfeitos, aceitaram a brincadeira na boa, retribuíram o cumprimento. Estava uma manhã esplêndida.

Como estava esplêndida a tarde em que Ambrosião pousou pela primeira vez sobre a ruiva seus olhos apartados do mundo pelas névoas da catarata. Dou o testemunho: o velho contou que havia sonhado com a mãe, uma calabresa boca-suja e ignorante, que fez dinheiro explorando com mão-de-ferro uns cortiços no Canindé. Dona Gina. Morreu com mais de cem anos. Diziam que era a origem da ruindade do clã.

La bruta de la vecchia me soprou uns números, Poeta.

Ambrosião me chamava de Poeta, por conta da minha mania com livros.

Ele mencionou a história dos números logo cedo, quando passei para apanhá-lo em casa, disse que precisava fazer um jogo. Mas só tivemos tempo no final do dia. O que é o acaso: parei o carro diante da primeira casa lotérica que avistei, na realidade depositando mais esperança no boteco que funcionava em frente –fazia calor e eu almejava uma água gelada ou, quem sabe, até uma cerveja, dependendo do humor de Ambrosião depois que fizesse a aposta.

Ele entrou na lotérica, percorreu com desinteresse a manada miúda que, naquela hora, empenhava seus trocados no sonho. Então encostou-se no balcão e tirou do bolso o papel onde levava anotados os números. Aboletei-me ao seu lado, com a ideia de também arriscar uma fezinha, embora não acreditasse muito nisso; nunca dei sorte nesse campo. Ambrosião rosnou:

Você não vai copiar meu jogo, vai? Para evitar aborrecimentos, amassei a aposta que começara a preencher e me afastei. Não demorou pro velho pedir ajuda: estava com problemas para decifrar um dos números. Apontou um garrancho no papel.

O que você acha que é isso, um sete? Está parecendo um dois. Que dois nada, é um sete! Agora não entendo a minha própria letra? Pois, pra mim, está parecendo um dois, insisti. E, de repente, também fiquei em dúvida: talvez fosse mesmo um sete. Cazzo.

A moça que atendia num guichê próximo ouviu nossa conversa e cantou a canção da simplicidade para o impasse: Por que você não faz dois jogos?

Convivi vários anos com Ambrosião, nunca consegui descobrir direito o que o agradava. Porém tive tempo e juízo de aprender que existia uma lista de coisas que ele não tolerava. Café frio, por exemplo. Jornal revirado. Gente que chegava atrasada a compromissos. A palavra "não" (primeira colocada no ranking desde sempre). O velho também nutria um ódio particular por quem se intrometia na conversa alheia sem convite. Caso daquela moça, uma ruiva de pele branca e olho claro. Porcelana boa de ver.

Gorete, informava a plaquinha verde alfinetada no bolso da camisa de seu uniforme.

Fiquei atento quando Ambrosião bufou e levantou a cabeça para encará-la. A jugular aparecia em relevo no pescoço dele. Um caso daqueles podia render uma frase áspera. Um insulto. Ou até, de modo drástico, um safanão.

A ruiva pareceu captar a poderosa onda de energia que se ergueu à sua frente, prestes a derramar-se sobre ela. E a confrontou sem nenhum temor nos olhos cor de opala. (Um bigodinho de suor enfeitava a boca de lábios grossos, cheia de personalidade.)

A respiração do velho silvou. Pensei: lá vem. Mas algo aconteceu. Ambrosião ficou azul.

Quedou paralisado e mudo de encantamento, com o papel dos números na mão e uma luz no rosto que eu desconhecia. Cara de santo no fim do dia em que se descobriu santo. Ele me olhou em busca de cumplicidade.

Como é que não pensei nisso? Claro, eu disse. Ambrosião aproximou-se do guichê, pediu com inesperada delicadeza: Você pode fazer isso pra mim, por favor?

Se soubesse como era bissexta aquela doçura, talvez Gorete tivesse sorrido. Mas não. Limitou-se a pegar o papel e continuou mascando seu chiclete entre a arrogância e a insolência, enquanto registrava os jogos na máquina. Uma única vez dignou-se a olhar na direção do velho. Para me dar razão: É um dois.

Ambrosião socou meu ombro, exultante. Não falei que era um dois, Poeta?

Preferi não dizer nada. Gorete ergueu a cabeça e me concedeu a graça de sua atenção por um segundo, se tanto. Era, de fato, bela. Mais que bela, exótica. Uma flor improvável. Gostei que houvesse em sua expressão um toque precoce de enfado, uma certa impaciência com os demais de sua espécie.

Ambrosião recebeu o comprovante da aposta, pagou e não quis o troco. Gorete agradeceu e desejou sorte. O velho beijou o papel, dobrou-o e guardou no bolso da camisa. E saiu flutuando da lotérica, sem despregar o olho da ruiva no guichê. Quando aterrissou no carro, incumbiu-me:

Quero saber tudo sobre ela. Mas tudo mesmo, capisci?

Espiei pelo retrovisor: Ambrosião continuava meio azulado ainda. Tinha o rosto remoçado. Um brilho diferente nos olhos. Um quê de louca adolescência.

MARÇAL AQUINO, 58, é escritor e roteirista de cinema e televisão, autor de "O Invasor" (Má Companhia). - JAN LIMPENS, 46, é ilustrador e quadrinista (limpens.com)

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