19 de outubro de 2016 | N° 18664
DAVID COIMBRA
A vista da janela
Ontem fez um dia que antigos cronistas chamariam de “plúmbeo”, mas, quando abri a janela do quarto, de manhã cedo, deparei com uma paisagem luminosa. O outono aproxima-se do auge, nessa esquina do mundo, e as folhas das árvores estão mudando de tom, oscilando entre o verde-claro e o lilás. Há, também no sul do Brasil, árvores belíssimas que se pintam de amarelo e roxo, mas aqui são tantas, tantas, que as cidades e os caminhos ficam coloridos pelo teto e pelo piso. Dá certo prazer pisar em um tapete vermelho feito de folhas.
Achei que, nestes tempos duros, você apreciaria ler sobre coisas boas e amenas. Afinal, o homem que consegue se alegrar com a paisagem é um homem saudável. Não haveremos de ser como aquele personagem da música de Belchior que “vivia o dia, e não o sol; a noite, e não a lua”.
Pensando nisso, decidi: terei um dia bom e ameno como a vista da janela do meu quarto. Haveria de trabalhar, como todos os dias, mas, para o fim da tarde, reservaria algo especial só para apreciar a visão da rua. Assim, depois de pegar o Bernardo na escola, fomos a um mercado russo que há aqui perto.
– Tem coisas boas na Rússia? – ele perguntou.
– As russas, por exemplo, são lindas – respondi. Ele ficou pensando.
Comprei um grande pão preto, uma dúzia de bolinhos de carne de caranguejo do Atlântico Norte e um tinto da Geórgia.
Os russos andaram boicotando os vinhos da Geórgia por razões políticas. A situação deve ter se normalizado, porque neste mercado há vários ótimos tintos georgianos – ótimos, pelo menos, para mim, que não sou conhecedor.
Stálin era da Geórgia. Lembrei-me de uma história que corria na velha União Soviética, no tempo da perestroika, e contei-a para o Bernardo: Gorbachev, angustiado com a crise que enfrentava o país, ligou para Stálin para pedir conselho. Stálin foi categórico:
– Mande liquidar à bala metade do comitê central e pinte o Kremlin de azul.
Gorbachev estranhou: – Por que azul? Stálin, sorrindo:
– Eu sabia que você teria dúvidas sobre esse segundo ponto.
O Bernardo não entendeu a piada, tive que ficar explicando.
Havia duas senhoras já em idade provecta trabalhando no caixa. Elas falavam entre si em russo, me atenderam falando em russo e se despediram em russo. O Bernardo olhava para elas com interesse. Quando saímos, ele comentou:
– Tu disse que as mulheres russas eram lindas...
Não é tudo que se pode dizer para meninos de nove anos.
Chegamos em casa e o Bernardo foi fazer o que fazem as crianças cheias de vida e energia: jogar no computador. Eu coloquei os bolinhos no forno, cortei o pão e abri o vinho. Tomei de dois cálices e chamei a Marcinha. Acomodei as cadeiras na sacada. Ficamos bebendo, comendo e olhando, apenas olhando, sem nem falar, por sabermos que é bom e ameno viver o sol, e não o dia; a lua, e não a noite.
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