quarta-feira, 26 de outubro de 2016



26 de outubro de 2016 | N° 18670 
DAVID COIMBRA

Lembre-se desta obra-prima

O Capita exalava liderança. Conheci-o superficialmente, nas coberturas da Seleção. Nas poucas vezes em que conversamos, tive de me conter para não bater continência. Bastava ele me olhar e eu sentia vontade de recuar para a marcação e dividir a bola com algum italiano. Não sem motivo: imagine, o homem comandou Pelé e Gérson. Era fera entre as feras, craque entre os maiores craques do maior time que já cravou as travas da chuteira em um gramado de futebol em todos os tempos, Amém.

Nome: Carlos Alberto Torres. Sobrenome: Capita.

O poder que o Capita exercia vinha-lhe tanto da personalidade que demonstrava quanto da bola que jogava. A prova cabal de sua técnica é o último gol da Copa de 70, uma obra-prima de construção coletiva e habilidade individual combinadas. Você já viu, há de ter visto, haverá de se lembrar.

O lance começa destruindo o mito da ofensividade irresponsável dos grandes times, porque o jogador que recupera a bola para o Brasil, quase em cima da linha lateral esquerda, é o que atuava, supostamente, como centroavante. É Tostão quem pressiona os italianos, auxiliado por Everaldo, que dá um carrinho tipicamente gaúcho, obrigando o adversário a desistir da jogada.

Falei com o próprio Tostão sobre esse episódio, e com Zagallo também. Ambos recordaram que Tostão era o único do time que não tinha obrigação de ficar atrás da linha da bola, quando a Seleção era atacada. Todos os demais, inclusive Pelé, recuavam para atrapalhar o adversário.

Mesmo assim, Tostão foi lá marcar e de lá saiu com a bola. A partir daí, os brasileiros passam a fazer o que mais sabem: a troca de passes. Ela roda e roda e roda até os pés de Clodoaldo, que aplica uma sequência de dribles rara para um volante, enganando quatro marcadores e tirando um ó da torcida.

De Clodoaldo para Rivellino, o Patada Atômica.

Rivellino, como soía acontecer, alonga até Jairzinho, o Furacão.

Jair está na ponta-esquerda.

Perceba nesse ponto como aquele time podia ser tudo, menos ortodoxo: Rivellino, em tese ponta-esquerda, está lá atrás, de volante, e Jair, em tese ponta-direita, está na esquerda. Aquele time era um grande meio-campo, sete dos 10 jogadores de linha eram meio-campistas. Zagallo foi o responsável por isso. Como Espinosa, ele tem essa crença de que você pode ensinar um jogador técnico a destruir, mas não pode ensinar um jogador que só destrói a jogar com técnica.

Jairzinho, portanto, deriva da ponta-esquerda para dentro, em paralelo à risca da grande área. Então, rola para o Rei. E o Rei, com toda a sua majestade, age com a naturalidade de quem está caminhando de mão no bolso no pátio de casa. Sem ver o jogador que vem de trás, mas sabendo que ele vem de trás, Pelé desliza um passe macio para que ele, Carlos Alberto Torres, o Capita, surja voando e bata de três dedos, certeiro e seco, na diagonal. Gol do Brasil. Um dos mais belos gols de uma das mais belas Copas.

Esse gol se tornou marca registrada de Carlos Alberto Torres, que morreu ontem, aos 72 anos. É como o Moisés de Michelângelo, como Crime e Castigo de Dostoievski, como a Quinta Sinfonia de Beethoven, só que feito de couro e grama.

Carlos Alberto Torres foi o maior lateral-direito do futebol mundial. E o maior capitão do futebol brasileiro. Um homem que era capitão até no nome.

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