15 de outubro de 2016 | N° 18661
MARTHA MEDEIROS
A mulher careca
Era uma mulher tranquila. Contou que estava tratando a reincidência do tumor, e falou isso com uma calma que fazia parecer que era apenas uma chatice. A vida a chamava
Estávamos as duas tomando um chá de cadeira porque o sistema havia caído (adoro a piada que diz que antigamente lutávamos para derrubar o sistema e agora, quando ele cai, é sempre um suplício). Eu estava renovando o meu passaporte, e ela, fazendo o seu primeiro. Já havíamos entregado os documentos e cada uma estava sendo atendida por um funcionário, uma mesa ao lado da outra. Faltava apenas tirar as fotos, mas precisávamos esperar. Puxamos conversa.
Ela estava preocupada justamente com a questão da foto. Perguntou para mim se precisaria tirar o gorro que usava. Respondi que sim, ninguém pode tirar fotos para passaporte usando chapéu ou algum outro adereço que dificulte a identificação. Nem sorrir podia. Foi então que ela me disse que estava em tratamento contra um câncer de mama. Não havia um fio sobre a cabeça.
Não sei se a preocupação dela era com a vaidade (o local estava apinhado) ou se tinha receio de que, quando fosse viajar, as fronteiras estrangeiras a barrassem por não ser reconhecida com um longo cabelo loiro, ou com um farto cabelo crespo, ou com uma penugem grisalha – não sei o que viria quando o tratamento acabasse, mas viria.
O sistema voltou e deram prosseguimento aos trâmites. O funcionário que a atendia avisou que, por fim, era hora de tirar o gorro. Ela me olhou, suspirou fundo e o tirou bem lentamente, como se evitasse chocar. Foi então que vi o quanto ela era bonita. Seus olhos eram claros, eu não havia reparado. De um segundo para outro, pareceu bem mais jovem. Metida que sou, disse a ela: tire a foto e não volte a colocar esse gorro (quase disse “esse gorro medonho”, mas me calei a tempo). Você é linda.
Ela era linda.
Esse pequeno recorte de uma tarde de terça-feira ficaria sem registro se, ao retornar para casa, não tivesse me dado conta de que estamos em pleno Outubro Rosa, o mês em que a sociedade se mobiliza para conscientizar as mulheres sobre a importância de se prevenir contra o câncer de mama. Eu já fiz minha mamografia anual mês passado e quem ainda não fez, estando acima dos 40 anos ou tendo casos de câncer de mama no histórico familiar, deve se mexer.
Adiar pra quê? Não sei o nome da moça. Estava acompanhada do marido, mas não o vi. Era uma mulher tranquila. Contou que estava tratando a reincidência do tumor, e falou isso com uma calma que fazia parecer que era apenas uma chatice. A vida a chamava. Claro. Quem faz passaporte tem um plano. Seja qual for, envolve deslocamento, busca, avanço, movimento. Coisas boas.
No momento da foto ela não sorriu porque não podia, mas tinha um acessório secreto que ninguém a impediria de usar, a danada da confiança.
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