sábado, 8 de outubro de 2016



08 de outubro de 2016 | N° 18655
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

SABER ESCOLHER

O longo exercício da nobre arte de ensinar tende a alcançar um patamar que precede uma inevitável encruzilhada da vida, e depois dela a zona imprecisa em que tanto seguimos ensinando quanto recomeçamos a aprender.

Como não há possibilidade de dominarmos o conhecimento, é inevitável a perspectiva de que um dia nossos discípulos adquiram autonomia e, com ar variável de generosidade e sutileza, nos ultrapassem.

Muitos professores têm dificuldade de conviver com essa realidade, que devia significar apenas a consagração da nossa condição de mestres, estes tipos generosos que transmitem tudo o que aprenderam e ainda se preocupam que sua prole intelectual não repita os seus erros, ou pelo menos tenham a chance de, ao cometê-los, serem originais.

Eu tinha 30 anos quando operei a minha primeira traqueia, o que viria a se transformar numa das paixões da minha vida cirúrgica. Tinha participado, como residente, de somente uma dessas operações, para tratar de uma condição rara naquela época: o estreitamento da traqueia por entubação prolongada num traumatizado de crânio. Semanas depois, internou a Nancy, uma mulata com uma cara bonita e um tumor traqueal logo abaixo das cordas vocais. 

Com meu mestre Ivan doente e anunciando protelações cada vez que o clínico o pressionava por uma data provável para a tal cirurgia, resolvi anunciar-lhe que, depois de ter lido tudo o que havia na escassa literatura disponível na época, me sentia capacitado a fazer a tal operação. Fui saudado com entusiasmo e desafogo pelo mestre, que não poupou em estímulo e provocação: “Isto mesmo, meta a cara e vá em frente. Ah, e se afrouxar e perna, não esqueça que estarei aqui, na tua retaguarda”.

No final de uma manhã muito fria, o mestre entrou no vestiário e me encontrou trocando de roupa. Sobressaltado, perguntou: “O que aconteceu? Não conseguiste? Não vais me dizer que já terminaste?”.

Quando lhe mostrei o segmento de traqueia ressecado, ele examinou as duas extremidades da peça, encheu o olho e me abraçou. Não sei quanto tempo durou aquele abraço. Pode ter sido o tempo equivalente a minha juventude, e lembro apenas que não queria que terminasse.

Por fim, nos separamos e ele foi elogioso e debochado, sem esquecer a sua parcela na proeza: “Uma coisa tens que admitir: eu sei escolher os filhos da puta para trabalhar comigo!”.

Nos anos que se seguiram, muitas vezes amei a memória do meu mestre querido, mas nunca tanto quanto naquela manhã gelada de um agosto remoto da minha vida.

E hoje, quando o Spencer faz alguma coisa que me deixa a sensação de que eu não conseguiria fazer melhor, fico com uma orgulhosa vontade de contar que também aprendi a escolher.

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