15 de outubro de 2016 | N° 18661
LYA LUFT
A criança que nos habita
Muitos leitores dizem que, lendo meus romances, acham que eu devo ter sido uma criança infeliz: “Que tragédia de então alimentou sua fantasia atual?”.
Divertida ou um pouco irritada, mil vezes expliquei: nem sempre o escritor fala de si mesmo. Nada das famílias que inventei é a minha família, nem a da infância, muito menos a de agora. São invenção, são ficção: ficção vem do latim fictio, aliás ligado a fingere, fingir. Portanto, a maior parte das histórias de ficção é fingimento, tão bem fingido, que às vezes até na hora de escrever nos parece verdade. Por isso digo que minhas histórias são “a verdade da minha mentira”... Quando criei minha primeira personagem anã, Sibila, a Bila das Parceiras, por exemplo, houve quem se dispusesse a pesquisar minha família para descobrir o anão, ou os anões. Sinto muito, a minha gente sempre foi mais pra gigante. Mas que a pobre Bilinha me parecia real, parecia.
É verdade também que seguidamente o que escrevemos reflete coisas, fatos, pessoas, emoções – que foram reais mas ali aparecem transfigurados. Então a infância não é, afinal, o nascedouro dos nossos medos ou alegrias, como tanto falei e escrevi? Penso que sim, e não é simples explicar essa contradição, pois minha infância, numa cidade pequena, numa casa grande com belo jardim, pais cuidadosos, avós, tios, primas, primos e um irmãozinho menor, foi tudo menos trágica.
Verdade que, tendo morrido antes de eu nascer um primeiro filhinho, acho que fui cercada de excessivos cuidados, do tipo “não anda na chuva, bota o casaco, não senta na pedra fria, olha o vento encanado”, mais algumas crenças de então, que hoje nos fazem rir, como “se comer fruta sem lavar, vai ter vermes na barriga, se engolir semente de laranja, vai nascer uma laranjeira na barriga, se sentar na areia sem a toalha, vão entrar bichinhos na sua... e se comer melancia e beber leite, cai morta”.
O que me afligia e ainda me acompanha não eram as circunstâncias nem as pessoas, mas a minha desvairada imaginação, que ainda me faz rir quando ninguém acha graça, me faz sofrer quando todos julgam alguma coisa muito banal. Eu detestava o Gordo e o Magro, chorava na matinê de pena deles: várias vezes minha mãe teve de me tirar do cinema, pois eu começava a perturbar as outras crianças.
Mas tenho certeza, sim, de que na infância a vida traça o perfil que procuraremos preencher pelo resto do tempo. Clima amoroso, alegre, seguro apesar das normais brigas ou discussões? Vamos tropeçar menos nesse caminho firme. Ambiente frio ou violento, desinteresse, rancor ou permissividade demais? Possivelmente vamos cair mais vezes, quebrar a cara e a alma.
Há muitas maneiras de, simplificando os enigmas e labirintos da nossa psique, explicar por que na adultez somos de certo jeito. Mas, junto com a criança que fomos, temos sempre, como fiel e severa companhia, a contrapartida de tudo isso: a capacidade de escolha. Não somos totalmente determinados. O fantasminha infantil em nós pode chorar sozinho no escuro, rir sem motivo além de se sentir feliz – mas adolescentes, adultos, velhos, temos o ônus de optar nas encruzilhadas.
A criança que nos habita não desculpa tudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário