domingo, 23 de outubro de 2016


22/23 de outubro de 2016 | N° 18667
SAÚDE MENTAL

De perto, ninguém é normal?

AUMENTO NO CONSUMO de remédios alerta para tendência crescente de diagnosticar e medicar qualquer tipo de sofrimento.

Se você come demais de vez em quando, fique atento: pode sofrer de transtorno de compulsão alimentar periódica. Se tem mania de doença, é candidato a um transtorno somatoforme. Se anda esquecido, pode ser sinal de transtorno neurocognitivo leve.

Mas será mesmo? Classificações como essas estão descritas na quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), que é editado nos Estados Unidos e considerado uma espécie de Bíblia da psiquiatria mundial, mas são alvo de discussões entre os profissionais de saúde. 

Na visão dos críticos, como o psiquiatra norte-americano Allen Frances (leia entrevista na página ao lado), que está lançando no Brasil o livro Voltando ao normal, haveria um exagero nessa tendência crescente de diagnosticar e medicar qualquer tipo de sofrimento. Afinal, qual é a fronteira que separa um problema comum da vida de um transtorno mental?

– Esse é o grande dilema da psiquiatria. O que é normal? O que é patológico? É muito fácil dizer se um paciente tem pneumonia ou não, mas em casos de depressão, por exemplo, os limites são mais tênues – pondera o psiquiatra Flávio Milman Shansis, presidente da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.

No país, um dos espaços de contestação ao excesso de prescrições é o Fórum de Medicalização da Educação e da Sociedade, que desde 2010 mobiliza uma série de entidades. Um dos signatários, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), lançou em 2012 a campanha Não à medicalização da vida.

– Existe uma lógica medicalizante que transforma problemas e questões sociais, culturais e econômicas em doenças. Se baliza todo mundo com um protocolo a seguir, tudo tem diagnóstico. Se a pessoa faz muita coisa é hiperativa, se não faz nada é depressiva. E isso tem a ver com um modelo de vida baseado no consumo: consomem-se diagnósticos, remédios. Não há espaço para a normalidade. Nessa lógica, um luto normal só pode ir até cinco dias, e se no sexto dia a pessoa ainda estiver triste, é transtorno – exemplifica a psicóloga Carolina Freire de Carvalho, que representa o CFP no fórum.

Uma das consequências é a popularização do consumo de substâncias como o metilfenidato, o princípio ativo da Ritalina, prescrito para pessoas com déficit de atenção, ou de clonazepam, a base do Rivotril, comumente receitado para ansiedade. E o mercado contribui para estimular o consumo. Segundo a farmacêutica Maria Fernanda Barros, coordenadora do Centro de Informações sobre Medicamentos do Conselho Regional de Farmácia da Bahia e também representante da entidade do fórum, a indústria investe três vezes mais em marketing do que em pesquisa e desenvolvimento.

– Nos preocupa esse uso “recreativo”, de gente que toma remédio para estudar, para aumentar a concentração. O metilfenidato é da família das anfetaminas, assim como a cocaína, e pode provocar muitos sintomas perigosos se o uso não for feito de forma adequada – alerta, lembrando que há casos até de mortes associadas ao consumo abusivo.

OUTRAS FORMAS DE TRATAR OS SINTOMAS

O psiquiatra Flávio Milman Shansis, também professor de residência em psiquiatria do Hospital São Pedro, concorda que a psiquiatria corre o risco de banalização de diagnósticos. Ele observa que frequentemente ocorrem “modas”, que levaram à disseminação de registros de síndrome do pânico, nos anos 1990, seguida pelo déficit de atenção e, mais recentemente, pelos transtornos bipolares. Ainda assim, avalia que o problema não seria o manual, e sim o mau uso que se faz dele.

– Temos vários problemas no DSM-5, mas ainda é o melhor que já tivemos. O que não se pode é utilizá-lo como se fosse uma lei, sem espaço para avaliação clínica – defende.

Para o psiquiatra Marcelo Pio de Almeida Fleck, professor titular do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mais preocupante do que a categorização feita pelo DSM-5 é a crença de que o único jeito de tratar os sintomas é com remédio. Ele salienta que, em outros momentos da história, já houve ondas com maior e menor número de diagnósticos. A diferença é que, atualmente, casos mais leves começaram a receber nomes e serem passíveis de tratamento, o que aumentou o universo potencial de pessoas com problema mental.

– Por um lado, isso pode resultar em hipermedicalização, o que preocupa. Mas também é preciso lembrar que, quanto mais cedo se intervém, mais fácil o tratamento, assim como em outras áreas da medicina. O fato de existir o diagnóstico não quer dizer que a intervenção tenha que ser feita com medicação. Alguns quadros podem melhorar com exercício físico ou mudanças na alimentação – destaca.

leticia.duarte@zerohora.com.br

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