quarta-feira, 19 de outubro de 2016


19 de outubro de 2016 | N° 18664 
MARTHA MEDEIROS

Poesia e liberdade

Assim que soube da escolha de Bob Dylan como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, meu primeiro pensamento foi: como assim, e Philip Roth? Porém, minha indignação corporativista durou poucos minutos, nem cinco. Poesia não é monopólio dos livros, e Bob Dylan foi premiado por causa dela, por esse gênero que dificilmente se traduz e que não tem endereço fixo.

Poesia é um troço tão livre, que confunde. A gente se acostumou a confiná-la em versos, sonetos e hai-kais geralmente impressos ou recitados em saraus – quase nunca a percebemos num formato popular como uma canção. Todos sabem o que é um poema. São aquelas frases bonitas que alguns não compreendem, mas que dão uma levitada na alma. São colocações que todos reverenciam, pois fogem do lugar-comum. É uma maneira suave de externar o que deveria se manter como um humilde segredo. É um patamar mais elevado da simplicidade. São expressões líricas que, mesmo lidas em silêncio, tornam-se sonoras.

Poesia obedece a um ritmo, portanto, não deixa de ser um gênero musical. Bob Dylan canta poemas muito bons, dizem. Não sei, meu inglês não é suficiente para essa avaliação, mas, se deslumbra a tantos, por algum motivo deve ser.

Quando soube da notícia, imaginei Philip Roth ganhando um Grammy, só para revidar. É piada, mas não seria impossível de acontecer. Se algum músico transformasse em canção um parágrafo desse estupendo escritor norte-americano e virasse um hit, Roth poderia repartir o prêmio máximo da música, sim. Kleiton e Kledir gravaram um disco inteiro (o álbum Todas as letras) com músicas compostas por escritores e o resultado foi um sucesso, até em Nova York o projeto foi reconhecido. Artistas migram, invadem a vizinhança, são experimentais por natureza. Poesia não rima com reduto. Rima com alforria.

Numa era em que se discute a identidade de gênero, quando pessoas lutam para libertar-se da obrigatoriedade de representar o sexo com que nasceram, querer limitar quem é músico e quem é escritor soa como uma discussão obsoleta. Hoje, todos podem ser tudo. Sem entrar no mérito se isso é um avanço ou uma esquizofrenia, assim é. Quem vai ousar restringir a área de atuação de um artista? A Academia Sueca resolveu seguir a tendência: abriu-se também.

Bob Dylan não seria Bob Dylan sem o uso preciso das palavras, e a palavra é a matéria-prima da literatura. Eu torcia por Philip Roth, mas resigno-me: vivemos num mundo sem fronteiras, onde restrição não rima com mais nada.

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