sábado, 21 de novembro de 2015


21 de novembro de 2015 | N° 18362
J J CAMARGO | J.J. CAMARGO

BONDADE À ESPERA DE UMA CHANCE

Se ela não fosse tão silenciosa, teria a badalação de um holocausto.

Quando surge uma oportunidade concreta, percebe-se que muita gente está disposta a ajudar e que só não tomou iniciativa antes por inércia ou falta de motivação, focada como sempre esteve na monotonia do seu cotidiano, com o próprio umbigo como epicentro da sua vidinha modesta. No extremo oposto, estão os possuídos pelo prazer de fazer o bem, que criam ONGs e organizam grupos de apoio e são os voluntários congênitos, energizados pela força da solidariedade.

Não se pode desistir do primeiro grupo absolutamente majoritário, e sempre silencioso, porque nele se acomoda muita gente genuinamente boa, à espera inconsciente de algum gesto ou circunstância que dispare o seu gatilho de bondade insuspeitada.

Esta história conta o despertar coletivo de um bando de desconhecidos agrupados por uma situação fortuita e inesperada. O grupo de transplante de fígado de Recife recebeu a informação de uma doação numa cidade distante. As características do doador eram totalmente compatíveis com as do candidato mais grave, naquele momento internado na UTI em condição dramática. Uma hora depois, o cirurgião encarregado da captação ligou do aeroporto, desanimado: o voo que partiria em 45 minutos estava lotado e, se não bastasse, onze passageiros potenciais compunham um time de ansiosos por alguma desistência.

Claudio Lacerda, coordenador desse programa, que é um tipo que não se submete quando a vida diz não, ficou irritado: “Não aceite, proteste, vá pro balcão, comova as comissárias, mas não sossegue enquanto não te colocarem sentado neste maldito avião!”.

De volta ao balcão, onde já se formava a uma fila ruidosa, nosso jovem cirurgião recomeçou: “Moça, me escute, por favor, se eu não conseguir chegar lá a tempo, uma pessoa que precisa de um fígado novo vai morrer, sem uma segunda chance”.

“Eu entendi, meu doutor, e sinto muito, mas não posso fazer nada, porque além de todos os tickets terem sido vendidos, ainda tem esta fila que o senhor está vendo...”. E foi então que o tal gatilho da bondade disparou – o primeiro da fila de espera anunciou: “Eu cedo meu lugar!”. O segundo, encarado pela comissária, resmungou: “Eu também!”. E então chegou a vez do terceiro, e justo ele era aquele líder, indispensável nestas circunstâncias em que os indecisos precisam ser atropelados: “Bom, pessoal, vocês ouviram a história do doutor, então, vamos resolver isto AGORA: alguém aqui NÃO cede?”.

Eliminada a concorrência da lista de espera, a comissária chamou o doutor e pediu: “O senhor está muito estressado, ainda não encerrou o tempo do check-in, e 20 passageiros com passagens confirmadas ainda não se apresentaram. Suba, tome um café e volte em 15 minutos. Prometo que vou fazer o possível para conseguir o seu lugar”. Esgotado o prazo, descendo a escada rolante, ele percebeu que havia um alvoroço no balcão da companhia. Pelo sorriso das comissárias, não precisou perguntar: alguém, sensibilizado, priorizara a vida que dependia daquele transplante. Ia começar a agradecer quando a funcionária mais jovem o interrompeu: “Não diga nada, eu sei como é que vocês trabalham. Meu pai foi transplantado lá!”.

Se a bondade não fosse tão silenciosa, teria a badalação de um holocausto.

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