sábado, 14 de novembro de 2015


14 de novembro de 2015 | N° 18355 
DAVID COIMBRA

A visão de Van Gogh


Quando eu era pequeno, caiu-me nas mãos um livro ilustrado sobre Van Gogh. Gostei do que li e vi, mas nada me impressionou tanto quanto um desenho que ele fez a carvão na época em que trabalhava como pastor entre os mineiros da Bélgica.

Van Gogh, é preciso dizer, foi o mais carismático dos grandes pintores. Picasso, o mais bem-sucedido. Van Gogh foi Garrincha; Picasso, Pelé.

Van Gogh foi Lennon; Picasso, McCartney.

Van Gogh era um homem atormentado, frustrado no amor e com a aceitação da sua arte, sofria acessos de loucura, tentou o suicídio, cortou a própria orelha, esfaqueou um amigo, passou fome e, no fim, matou-se ou se deixou matar.

Picasso desfrutou de uma existência longa e prazerosa, teve todas as mulheres que quis, estava sempre cercado de amigos que o veneravam, sua fama era tal, que pagava as contas dos restaurantes com um rabisco no guardanapo, jamais hesitou a respeito do que queria e só fazia o que queria, e fazia tão bem, e tanto, que realizou 60 mil obras de arte, o suficiente para duas vidas centenárias muito produtivas.

Mas Van Gogh tinha algo de mais humano nele, que era a sua dor. Esse pequeno quadro de que falo mostra toda a aflição de uma alma cândida. Porque só um homem que conheceu a dor pode reconhecê-la, quando a vê. Ao conceber esse quadro, Van Gogh provou que a viu.

Ao contrário de suas futuras pinturas coloridas e vibrantes, trata-se de um desenho sombrio. Mostra uma mulher caminhando de costas para o observador, vestida com um manto negro que lhe cobre da cabeça aos pés, percorrendo um caminho sinuoso, entre duas árvores completamente desfolhadas, cujos galhos parecem se retorcer ameaçadoramente em sua direção.

Muito olhei para essa gravura e, com meus, sei lá, nove anos de idade, volta e meia sonhava com ela. Via a cena retratada por Van Gogh, via a mulher se movendo entre duas árvores nuas. Ao acordar, pensava no que o pintor sentira ao testemunhar esse breve momento e em como ele fora sensível para retratá-lo. Queria eu saber fazer o mesmo.

Aquelas árvores de aparência seca, apenas galhos e tronco, elas só são possíveis nessas alturas do mundo em que o clima é mais duro. No outono ameno do Brasil, muitas folhas caem, mas outras tantas resistem, como numa afronta ao inverno que vem. Então, a paisagem que impactou Van Gogh é impossível ao sul do Equador.

Mas aqui, no norte dos Estados Unidos, aqui é possível. Agora mesmo, as folhas já cobrem o chão, e as árvores já estão nuas.

Deu-se que, nesta semana, eu andava pela rua no meio de uma tarde nublada e, logo à frente, exatamente entre duas árvores despidas, movia-se, de costas para mim, uma mulher de burca. Estaquei de espanto. Estava ali. Ali! A cena que viu Van Gogh! Um século e meio depois, o mesmo pedaço de segundo se repetia, um instante tão poderoso, que mobilizou um artista e fez um menino sonhar, uma réstia de história que implorava para ser contada.

Fiquei pensando em tantas maravilhas que acontecem na vida, e que se desmancham no tempo, sem ter um Van Gogh para registrar. E então a mulher se foi, e o feitiço se desfez. Suspirei. Como já disse Paulinho da Viola: as coisas estão no mundo, só o que eu preciso é aprender.

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