sábado, 21 de novembro de 2015



22 de novembro de 2015 | N° 18363 
L. F. VERISSIMO

Livros, livros


Dizem que Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil inteiro. Não sei se a estatística é correta, mas, se for, a capital argentina ainda perde para Óbidos, em Portugal, que tem 70 habitantes fixos e 12 livrarias. (O Google desmente a informação orgulhosa que me deram lá e diz que são 2 mil habitantes fixos, o que não diminui o espanto e a inveja com a proporção população/livrarias da cidade). As poucas ruas de casas brancas de Óbidos descem de um castelo medieval e de uma igreja antiga – que não é mais igreja, é livraria – situados na sua parte mais alta. 

A cidade normalmente se enche de turistas todos os dias, mas estava excepcionalmente cheia para o seu primeiro Festival Literário Internacional, do qual participei, há um mês, junto com outros brasileiros, como Ruy Castro, Nelson Motta, Gregório Duvivier, Francisco Bosco, João Paulo Cuenca e Sérgio Rodrigues, e portugueses (ou afro-portugueses), como os grandes Mia Couto e José Eduardo Agualusa, este o curador da parte literária e um dos idealizadores do encontro. 

Também houve música, com artistas como Miúcha e Georgiana de Moraes e o grupo do Moreno Veloso, para ficar só nos brasileiros, e um show fantástico da portuguesa Cristina Branco cantando Chico Buarque com o trio do pianista Mário Laginha. Minha participação foi junto com Ricardo Araujo Pereira, jovem cômico popularíssimo em Portugal que começa a conquistar o Brasil (sua entrevista com o Jô, há algum tempo, foi ótima).

Nosso hotel ficava fora da muralha que cerca a cidade. Era um antigo convento, e seu interior fora totalmente redecorado com livros. Livros por toda parte. Livros do chão até o teto. Livros e mais livros. Lembrando daqueles livros agora, depois do acontecido em Paris, e do que ainda pode acontecer em qualquer lugar deste insensato mundo, pensei: os livros de Óbidos também pareciam uma muralha. Mas não nos protegiam da loucura.

KALASH

Os rifles AK criados por Mikhail Kalashnikov têm um apelido carinhoso na Rússia: “Kalash”. O primeiro modelo do “Kalash” foi o AK-47, um sucesso de vendas instantâneo. Tornou-se o mais usado fuzil automático do mundo e chegou a ser o produto mais exportado da União Soviética. Sua simplicidade e eficiência foram responsáveis pela sua adoção universal depois do aparecimento do primeiro protótipo. O modelo atual, provavelmente o que portavam os terroristas de Paris, é o AK-102.

Imagino que Mikhail Kalashnikov já tenha morrido. Vivia uma aposentadoria tranquila nos Urais, cercado pelas filhas. Fora a surdez, resultado dos anos testando armas, não ficou com nenhuma sequela do seu trabalho. Certamente nenhum remorso. Orgulhava-se do que tinha feito pela pátria. Se seu fuzil foi usado em guerras sujas, massacres e assassinatos em todo o mundo, inclusive na Rússia, isto não era da sua conta. Só estava fazendo seu trabalho. Nenhum fantasma shakespeariano perturbou o seu sono nos Urais, como os fantasmas que visitaram Ricardo III antes da sua batalha final para lhe dizer “Desespere e morra”.

Testemunhas dos atentados em Paris se surpreenderam com o sangue-frio dos terroristas, que saíam dos locais dos massacres caminhando calmamente. Os que sobreviveram e os que se imolaram só estavam fazendo seu trabalho, o de aterrorizar uma cidade justamente com a tranquilidade de quem sai de um bar e vai pra casa. Sem pressa e sem remorso. 

É justamente isso – a ausência de qualquer coisa parecida com remorso quando se está matando por uma causa sagrada – que impossibilita qualquer apelo à razão, ou compreensão, no trato com o terror. A distância entre um terrorista e a consciência do horror dos seus atos é quase a mesma distância de Kalashnikov do gatilho de um “kalash”.

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