09 de novembro de 2015 | N° 18350
DAVID COIMBRA
Ter câncer
Quando você conta que tem câncer, é como se lançasse uma maldição sobre sua própria cabeça. O interlocutor atira de volta um olhar de compaixão, como se lamentasse: “Coitado, está morrendo”. E, às vezes, é exatamente o que você sente. Que está morrendo.
Não por acaso. O câncer mata mesmo. É o chamado Imperador de Todos os Males. Minha avó não pronunciava esse substantivo. Falava “doença ruim”. Morreu sem citar o nome do que a matava.
Mas, na verdade, as coisas não funcionam assim. Não mais. A ciência oferece, a cada dia, maiores possibilidades de cura. Só que possibilidades não são certezas e, não raro, você se vê emparedado: parece não haver saída. Parece o fim.
Passei por essa situação. No pior de todos os dias, quando havia recebido uma espécie de sentença de morte, ocorreu algo estranho. Não sabia bem o que pensar. Nem me sentia triste; sentia-me apenas desnorteado. Sozinho na biblioteca de casa, ao entardecer, lembrei que minha mãe, quando enfrentava um momento complicado, pegava a Bíblia que tínhamos e a abria aleatoriamente. O trecho em que seus olhos esbarrassem ela lia, e o interpretava como uma mensagem transcendental a respeito daquela sua dificuldade.
Eu, que me orgulho de ser racional, sempre achei esse hábito da minha mãe algo exótico. Mas, naquele fim de tarde, meu olhar, por algum motivo, fixou-se sobre uma das Bíblias que guardo na biblioteca. Caminhei até o livro meio sem pensar. Abri-o. E a frase que encheu meus olhos, em negrito, reluzente, era o título do primeiro livro de Reis: A Velhice de David.
Preciso dizer que aquilo chegou a me fazer recuar um passo, com o susto. Causou-me forte impacto. Não, não fiquei achando que teria um tratamento especial de Deus, da vida, da sorte, do que fosse. Não me considero tão importante para mobilizar o Além a meu favor. Mas, de alguma forma, aquele episódio foi um alento. E ajudou a me reerguer outra vez.
O que pretendo dizer é que compreendo o desespero de quem se encontra em situação semelhante. Compreendo que você fica aflito para encontrar uma saída em meio à fumaça do incêndio, e que qualquer luz distante se transforma em esperança de ar fresco. É para lá que você corre.
É o desespero que faz com que as pessoas se atirem em direção a essa fosfoetanolamina, que surgiu nas redes sociais como substância milagrosa que cura todos os cânceres, porque o câncer não é um, são mil. E essas pessoas estão certas. Eu mesmo, se ainda estivesse me sentindo como naquele dia angustiante, talvez também tentasse obter esse medicamento por via judicial.
Mas isso não quer dizer que estaria fazendo o melhor para mim. Ninguém sabe se essa droga funciona, nem como funciona, simplesmente porque ela não foi testada em seres humanos. A ciência ainda não a estudou suficientemente. É a ciência, a racionalidade, a inteligência que diz que usar essa substância, agora, pode ser um risco. É o desespero, o sentimento, a emoção que clama por ela que quer usá-la mesmo assim.
Bem. Estamos entre o desespero e a racionalidade, pois. A pergunta que me inquieta é a seguinte: como é que um juiz do STF toma sua decisão de liberar a droga baseado no desespero, em vez de se basear na racionalidade?
O caso da fosfoetanolamina é assustador. Nem tanto pelas consequências que a droga pode acarretar, mas pelos critérios que demonstrou ter o mais alto tribunal da nação. O STF fez um julgamento político de uma pendência científica. Não haverá, suponho, de ser científico quando for julgar a política.
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