segunda-feira, 30 de novembro de 2015



30 de novembro de 2015 | N° 18371 
DAVID COIMBRA

O que salva a vida


Houve tempo em que voejava pelo mundo um bichinho chamado periquito-da-carolina. Era uma incomum espécie de papagaio que se estabelecera no norte do planeta. Você sabe: os papagaios, como os cariocas, não gostam de frio.

O periquito-da-carolina encantava por sua beleza. Tinha penugem verde-esmeralda e a cabeça dourada. Era um passarinho pacífico, que gostava de se empoleirar em bandos nos galhos das árvores. Por isso, tornava-se alvo fácil para os caçadores. Seu comportamento era peculiar: quando um homem atirava num grupo, os sobreviventes voavam, assustados, mas, imprudentemente, davam meia-volta para acudir os feridos. E os caçadores disparavam de novo, abatendo-os às centenas.

Charles Peale, autor do livro Ornitologia Americana, descreveu, no século 19, um episódio em que atirou várias vezes contra esse belo passarinho:

“A cada descarga sucessiva, ainda que montes deles caíssem, a afeição dos sobreviventes parecia aumentar, pois, após algumas voltas, eles tornavam a pousar perto de mim, olhando para os companheiros abatidos com sintomas tão manifestos de compaixão e preocupação, que me desarmaram totalmente”.

O periquito-da-carolina, um bicho que não fazia mal algum ao homem, foi extinto pelo homem. Repare: Peale amava os pássaros. Estudou-os. Escreveu sobre eles. E, ainda assim, os matava. Isso é coisa nossa, dos seres humanos. Estamos sempre procurando motivos para matar.

Agora mesmo, um homem assassinou três pessoas numa clínica de planejamento familiar, no Colorado. Matou por ser contra o aborto e “a favor da vida”. Ou seja: extinguiu vidas para defender a vida.

Alguém haverá de dizer que isso é coisa do homem branco, capitalista, que... Balela.

Pegue o índio brasileiro, que tem fama de ser bonzinho. O índio brasileiro é responsável pela extinção da maioria dos grandes animais do continente. Havia, nas Américas, pelo menos 30 espécies de animais de porte avantajado, maiores do que pumas e ursos, que simplesmente desapareceram, devido à ação dos índios. Preguiças com o dobro do tamanho de um elefante, felinos ferozes, aves imponentes, todos foram extintos pelos indígenas muito antes da chegada do homem branco.

A diferença entre os índios e os europeus era o avanço tecnológico. Como os europeus contavam com armas melhores, conseguiam, em poucas décadas, acabar com espécies que os indígenas levariam centenas de anos para liquidar.

A sede de matar é a mesma em todos os homens, porque todos fazemos parte da mesma espécie, o sapiens.

O que pode preservar a vida de outras espécies, e a da nossa própria, não é um retorno à existência nômade, como levava a maioria dos índios, nem a abdicação à tecnologia.

Ao contrário. O que pode preservar a vida é o desenvolvimento.

Até o século 19, os bichos, as mulheres, as crianças e a natureza eram vistos e tratados de forma diferente (os homens também eram tratados de forma diferente). Foi o aumento do volume de conhecimento que mudou a maneira como o ser humano se vê e a maneira como ele vê o mundo em que habita.

Nunca, em 4 bilhões de anos da história da vida, a vida foi tão defendida, preservada e estudada como agora. Nesse tempo, 99,9% das espécies foram extintas, a maioria delas não por culpa do homem. Mas agora, graças ao homem, a vida tem sido protegida, e a natureza também, como prova a conferência do clima, ora realizada em Paris.

É a ciência que nos empurra para a civilidade, é a ciência que pode nos defender. É a ciência que ilustrará homens primitivos, como o matador do Colorado, ou os fanáticos do Estado Islâmico. A ciência dos países desenvolvidos, das democracias capitalistas, do mundo onde as diferenças são respeitadas. Só a ciência nos salvará.

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