quinta-feira, 12 de novembro de 2015


12 de novembro de 2015 | N° 18353
FILMES

Mil e uma noites em um triste país


CONTOS DE XERAZADE servem de pretexto para o diretor lusitano Miguel Gomes esboçar uma crítica ao Portugal contemporâneo

“Ó, venturoso Rei, fui sabedora de que num triste país entre os países…”. Assim Xerazade dá início ao relato das histórias que conta na trilogia de filmes As Mil e Uma Noites (2015), do diretor Miguel Gomes. Um dos mais cultuados nomes do cinema português contemporâneo, o cineasta pega emprestada a estrutura episódica e fabular da célebre compilação de contos populares árabes ancestrais para esboçar um painel contemporâneo de seu país. O tríptico de longas teve estreia internacional na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes deste ano – e sua primeira parte, subtitulada Volume 1, O Inquieto, entra em cartaz hoje na Capital.

Em As Mil e Uma Noites, Gomes costura duas vertentes características de sua obra: por um lado, o interesse pela reverberação da tradição, da cultura e das idiossincrasias lusitanas na sociedade portuguesa de hoje, presente no filme Aquele Querido Mês de Agosto (2008); por outro, o fascínio nostálgico pelas formas narrativas do passado, como a evocação do cinema de aventuras coloniais e dos romances epistolares em Tabu (2012). Volume 1, O Inquieto é dividido em três capítulos, precedidos por um prólogo em que o próprio realizador atua.

O longa começa mostrando dois problemas simultâneos que afligem a população da cidade portuária de Viana do Castelo em meados de 2013: a crise europeia que provoca o desmantelamento do estaleiro local e a demissão de trabalhadores e uma praga de vespas africanas que ameaça a apicultura da região. Miguel Gomes e sua equipe registram imagens e entrevistas com as pessoas afetadas – mas o tom documental desse início é quebrado pelo suposto impasse criativo do diretor, que subitamente abandona as filmagens diante da câmera.

“Fujo pelas ruas de Viana do Castelo, perseguido pela equipa técnica. Fazer este filme foi a ideia mais estúpida da minha vida! Como é que se pode fazer um filme de intervenção social quando se deseja filmar histórias maravilhosas? E como filmar fábulas intemporais quando se está comprometido com o presente? Estou no olho do furacão e ao mesmo tempo num beco sem saída...”, conclui Gomes antes de ser “capturado” por seus colegas de trabalho. 

Condenado por abandono de set, o realizador evoca o subterfúgio de Xerazade a fim de adiar a execução de sua sentença, convocando a personagem a contar histórias para seus futuros algozes. As três tramas apresentadas misturam atores e intérpretes não profissionais, habitantes de cidades portuguesas como Resende e Aveiro. Em todos os lugares mostrados, a debacle econômica de Portugal é uma sombra sempre presente a garrotear o trabalho e o cotidiano, os sonhos e os amores dos cidadãos.

O elenco de As Mil e Uma Noites inclui Adriano Luz, grande ator de títulos como a minissérie Mistérios de Lisboa (2010), de Raoul Ruiz, e o filme Os Maias – Cenas da Vida Romântica (veja ao lado). Já a fotografia das três produções do projeto – que inclui ainda os longas Volume 2, O Desolado e Volume 3, O Encantado – é do tailandês Sayombhu Mukdeeprom, colaborador do cineasta Apichatpong Weerasethakul em obras-primas como Síndromes e um Século (2006) e Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010).

Lacunar, enigmático e melancólico como sua origem literária, As Mil e Uma Noites alterna depoimentos quase jornalísticos com imagens poéticas como a de uma baleia encalhada que expele uma sereia de dentro de si. “Peço que me construam uma baleia. Aconselho qualquer realizador a mandar construir uma baleia quando estiver em sarilhos. Sempre se ganha algum tempo”, anotou ironicamente Gomes em seu diário de filmagem.

roger.lerina@zerohora.com.br

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