quinta-feira, 25 de junho de 2015




25 de junho de 2015 | N° 18205
DAVID COIMBRA

O Brasil que não existe mais

É bonito ser Botafogo. Acho que vou virar Botafogo. Se me tornar mesmo Botafogo, criticarei com veemência o processo que o clube está movendo contra o Porta dos Fundos. O Botafogo está pedindo R$ 10 milhões ao Porta dos Fundos por causa de um vídeo que brinca com os patrocínios da camisa do time.

Isso não é Botafogo. O Botafogo é um time do Brasil antigo, o Brasil pelo qual os estrangeiros suspiram sem saber que não existe mais, o Brasil dos brasileiros que não se levavam a sério. Só no Brasil antigo um Garrincha seria possível, por exemplo.

Garrincha, o jogador-símbolo do Botafogo, era o que no Brasil antigo se chamava de “aleijado”. Hoje essa palavra motiva processo, mas no Brasil antigo viveu até um grande artista plástico que era chamado, imagine, “Aleijadinho”. Fico pensando como chamariam o Aleijadinho hoje. “Deficientefisicozinho?” Não pode ser... De qualquer forma, Garrincha não era deficiente físico. Era... aleijado. Na velha concepção, é claro, algo difícil de explicar em 2015.

Garrincha bebia antes dos jogos, fugia da concentração e não voltava para ajudar na marcação. Em tudo, um ser do passado, que vivia uma vida extinta, algo como Luís XIV, o Rei Sol, como Sócrates, Buda, professores de datilografia e vendedores de fita cassete.

Depois de Garrincha, o Botafogo montou um time que era conhecido como “Time do Bagaço”. Era sensacional: Paulo César Caju, que foi campeão do mundo pelo Grêmio, um cracaço que falava francês, usava cabelo black power e vestia pantalonas com a boca de sino do tamanho de um cone; Zequinha, que também jogou no Grêmio, autor de três gols num Gre-Nal de 1975, ponta clássico que jogava só de um jeito, driblando para a linha de fundo e cruzando, só; mais Jairzinho, o Furacão; e Gérson, o Canhotinha de Ouro, que fumava três carteiras de cigarro por dia. Bonito de ver aquele time jogar. Time impossível num tempo de campeonato de (argh) pontos corridos.

Naquele Brasil, daquele Botafogo, ninguém se preocupava em processar ninguém. Como as pessoas não se levavam tão a sério, elas viviam suas vidas, pronto. Está certo que às vezes dava algum problema. Até no Botafogo: uma vez, o técnico-jornalista-comunista João Saldanha sacou de um revólver e saiu atrás do goleiro Manga, a quem acusava de ter se vendido para outro time em extinção, o Bangu. Manga, para se salvar, pulou um muro de três metros de altura, demonstrando toda a agilidade que resplandeceria no Inter, oito anos depois.

João Saldanha era um tipo do Brasil antigo, inviável no atual. João Saldanha dizia verdades com coragem e mentiras com graça, parecido com Vinicius de Moraes, outro que não sobreviveria agora. Bem como Tom, Elis, Lupicínio, Iberê, João Gilberto, Dorival Caymmi. A música e o futebol brasileiros não sobreviveriam no Brasil de hoje, nem o verdadeiro Rio de Janeiro, que esse de agora é falso.


O Botafogo só não é campeão de nada porque é um Botafogo de um Brasil que não existe mais. Se quiser ser campeão, terá de mudar. Terá de deixar de ser Botafogo. Mas aí eu não serei Botafogo também. Só serei Botafogo antigo, do Brasil antigo. Acho que sou um antigo, afinal. Nós, antigos, não somos campeões no século 21.

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