quarta-feira, 17 de junho de 2015



17 de junho de 2015 | N° 18197 
DAVID COIMBRA

Fazer com amor

Anteontem conversamos com o Tostão no Timeline.

Aliás, anteontem. Poucas vezes, ouvi alguém falar, claramente: “anteontem”.

Conheço muita gente que diz “ontionti”, aí sim. Tenho simpatia por “ontionti”, acho cândido e levemente brejeiro, mas simplesmente não consigo falar isso. Agora: confesso já ter falado “antiontem”, o que me causa arrepios, porque “anti” ontem seria algo oposto ao ontem. Ou seja: o amanhã.

Está bem. Chega de tergiversações. Voltemos ao Tostão, com quem conversamos... anteontem. Falamos sobre Zito, que morreu. Nossa conversa foi ótima, porque amena. O futebol é bom quando é tratado com amenidade. Tostão ama o futebol na sua essência, o futebol do jogo jogado, da bola na grama, do virtuosismo e da plasticidade, e isso é bonito. É como um amante da música, da literatura, das artes ou do cinema falando sobre aquela atividade que lhe dá tanto prazer: ele passa a sensação prazerosa ao interlocutor.

Pessoas assim são abençoadas. Elas sempre encontrarão sentido na vida. Você está triste? Pense na beleza de um lançamento em profundidade de Roberto Rivellino, a bola viajando por 60 metros, até pousar, doce como o beijo da mulher amada, no pé direito de Gil, o Búfalo Gil, jogador de força e velocidade, que se consagrou graças à precisão dos passes do Riva. Isso que a torcida não queria que o Gil jogasse, queria o Cafuringa, ponta de drible fácil, mas que marcou só uns oito gols na carreira.

Cafuringa morreu moço, 42 anos. Jogava uma partida de veteranos e machucou o braço e a perna. Começou a doer, mas ele não quis ir ao médico. Tinha medo de hospital. Dois dias depois, o braço e a perna estavam inchados como duas jiboias, e ele não conseguia comer. Quando a família enfim o arrastou ao hospital, era tarde demais.

Mas essa é uma história triste, melhor não lembrar disso, melhor lembrar, talvez, da forma como Falcão corria com a cabeça levantada, a grande cabeleira encaracolada esvoaçando. Falcão e Batista tinham uma competição de melenas, naquela época. Hoje ambos são calvos, veja a ironia do mundo.

Palhinha, do Cruzeiro, usava o cabelo bem curto, à escovinha, como se dizia, mas era o último a entrar em campo, porque ficava ajeitando cada fio ao espelho, antes das partidas. Palhinha calçava chuteiras número 37,5, que mandava vir da Europa. Ele foi, exatamente, o sucessor de Tostão no Cruzeiro.

Tostão parou de jogar prematuramente, aos 26 anos de idade. Levou uma bolada no rosto e descolou a retina. Ainda posso ver a foto dele saindo de campo todo ensanguentado. Veio para os Estados Unidos a fim de tentar se recuperar, mas os médicos americanos disseram que, se levasse outra bolada, corria o risco de ficar cego.


Tostão abandonou o futebol e ficou amargurado. Não falava mais sobre o jogo. Não dava entrevistas. Tornou-se o “doutor Eduardo”, atendendo em Belo Horizonte. Mas seu amor pelo futebol foi maior do que a dor. Logo, ele estava se encantando com outros craques, outras jogadas, outros grandes times, e começou a se abrir, e cedeu à paixão e, em pouco tempo, estava falando e escrevendo sobre o jogo, sobre o que mais gosta na vida. 

Assim, Tostão se elevou de novo no mundo do futebol e suavizou sua vida. Porque faz o que gosta, e faz sem rancores, com doçura. Com amor. Os outros sentem, quando você faz algo com amor.

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