sábado, 6 de junho de 2015



07 de junho de 2015 | N° 18186
MOISÉS MENDES

Cássia e os exorcistas


Os casais que se reconhecem na propaganda que O Boticário fez para o Dia dos Namorados deveriam ver o documentário sobre Cássia Eller. Eu vi, como retardatário, no domingo passado na GloboNews. É um tapa na cara do cinismo nacional.

O comercial romantiza, como deve, o encontro de três casais – um casal de dois rapazes, outro de duas moças e um terceiro, o convencional casal heterossexual. Já o documentário mostra, sem frescuras, a trajetória tempestuosa de Cássia.

Não há romantização no documentário sobre a moça que atordoou a música brasileira com um vigor que nunca mais tivemos. Cássia – conta a mãe no filme de Paulo Henrique Fontenelle – às vezes ligava para se queixar de tristezas, como se pedisse desculpas pela vida louca e por ser diferente a ponto de viver com outra mulher.

Os homofóbicos que atacaram a propaganda do Boticário, a partir da guerra aberta por um pastor, também poderiam ver o filme. Não para se convencer de que duas mulheres merecem se amar, mas para tentar enxergar a família de Cássia e da namorada Maria Eugênia, do filho Chicão, dos amigos e da arte pulsando em torno deles. Nada no filme é como no comercial que perturbou tanto os preocupados com a sexualidade dos outros ou com alguma perturbação que isso provoca em almas inseguras.

Homofóbicos são os reacionários da hora, mobilizados pelos negócios de certos pastores. Ser contra gays é se dedicar a uma atividade rentável, sustentada por grandes rebanhos. Ganha-se dinheiro com a homofobia (e com outros ódios), enquanto se passa a cestinha e se reza por um lugar no céu.

Não há como não se perguntar, ao final do documentário, o que Cássia Eller estaria fazendo hoje para cuspir nos espertalhões. O filme mostra bem o que ela fazia na época, como afronta aos moralistas. Era atrevida, debochada, transgressora.

É provável que os pastores preocupados com diabos e gays estejam cada vez mais à vontade no mundo porque não temos mais Cássia, Cazuza, Renato Russo. No filme, em algum momento, tímida (era fera apenas no palco), Cássia diz: pode não parecer, mas eu sou romântica.

Cássia morreu há 14 anos. Nando Reis conta que às vezes compõe, sem se dar conta, uma música que somente poderia ser cantada por ela.

O documentário é, sem ter essa intenção, também um retrato da evolução das relações homoafetivas. Quando Cássia Eller morre, há o conflito pela guarda de Chicão. Maria Eugênia deveria ficar com o menino de oito anos – conforme depoimentos de amigos, baseados num desejo manifestado pela cantora à própria mãe. O pai de Cássia quer a criança. A Justiça determina: Chicão fica com Maria Eugênia, ela é a mãe.

Chicão é filho, sob encomenda, de um músico da banda de Cássia. Ela e Maria Eugênia têm casos paralelos. Cássia consome drogas, bebe muito.

Os homofóbicos não devem ficar imaginando que, por causa dos comerciais do Boticário, todos os casais gays serão tentados a reproduzir a vidinha sem transgressões, sem drogas e sem transtornos dos casais heterossexuais. Os “normais” não devem temer essa concorrência!

Nem pensem que Cássia Rejane Eller é referência de conduta a ser condenada. Acorrentem seus demônios. Cássia não pretendia ser modelo de nada. Era apenas uma tempestade com calmarias e recaídas românticas, como as da bela propaganda que exorcistas pilantras fingem temer.

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