07
de junho de 2015 | N° 18186
MOISÉS
MENDES
Cássia e os exorcistas
O
comercial romantiza, como deve, o encontro de três casais – um casal de dois
rapazes, outro de duas moças e um terceiro, o convencional casal heterossexual.
Já o documentário mostra, sem frescuras, a trajetória tempestuosa de Cássia.
Não
há romantização no documentário sobre a moça que atordoou a música brasileira
com um vigor que nunca mais tivemos. Cássia – conta a mãe no filme de Paulo
Henrique Fontenelle – às vezes ligava para se queixar de tristezas, como se
pedisse desculpas pela vida louca e por ser diferente a ponto de viver com
outra mulher.
Os
homofóbicos que atacaram a propaganda do Boticário, a partir da guerra aberta
por um pastor, também poderiam ver o filme. Não para se convencer de que duas
mulheres merecem se amar, mas para tentar enxergar a família de Cássia e da
namorada Maria Eugênia, do filho Chicão, dos amigos e da arte pulsando em torno
deles. Nada no filme é como no comercial que perturbou tanto os preocupados com
a sexualidade dos outros ou com alguma perturbação que isso provoca em almas
inseguras.
Homofóbicos
são os reacionários da hora, mobilizados pelos negócios de certos pastores. Ser
contra gays é se dedicar a uma atividade rentável, sustentada por grandes
rebanhos. Ganha-se dinheiro com a homofobia (e com outros ódios), enquanto se
passa a cestinha e se reza por um lugar no céu.
Não
há como não se perguntar, ao final do documentário, o que Cássia Eller estaria
fazendo hoje para cuspir nos espertalhões. O filme mostra bem o que ela fazia
na época, como afronta aos moralistas. Era atrevida, debochada, transgressora.
É
provável que os pastores preocupados com diabos e gays estejam cada vez mais à
vontade no mundo porque não temos mais Cássia, Cazuza, Renato Russo. No filme,
em algum momento, tímida (era fera apenas no palco), Cássia diz: pode não
parecer, mas eu sou romântica.
Cássia
morreu há 14 anos. Nando Reis conta que às vezes compõe, sem se dar conta, uma
música que somente poderia ser cantada por ela.
O
documentário é, sem ter essa intenção, também um retrato da evolução das
relações homoafetivas. Quando Cássia Eller morre, há o conflito pela guarda de
Chicão. Maria Eugênia deveria ficar com o menino de oito anos – conforme
depoimentos de amigos, baseados num desejo manifestado pela cantora à própria
mãe. O pai de Cássia quer a criança. A Justiça determina: Chicão fica com Maria
Eugênia, ela é a mãe.
Chicão
é filho, sob encomenda, de um músico da banda de Cássia. Ela e Maria Eugênia
têm casos paralelos. Cássia consome drogas, bebe muito.
Os
homofóbicos não devem ficar imaginando que, por causa dos comerciais do
Boticário, todos os casais gays serão tentados a reproduzir a vidinha sem
transgressões, sem drogas e sem transtornos dos casais heterossexuais. Os
“normais” não devem temer essa concorrência!
Nem
pensem que Cássia Rejane Eller é referência de conduta a ser condenada.
Acorrentem seus demônios. Cássia não pretendia ser modelo de nada. Era apenas
uma tempestade com calmarias e recaídas românticas, como as da bela propaganda
que exorcistas pilantras fingem temer.
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