quarta-feira, 24 de junho de 2015



24 de junho de 2015 | N° 18204
PEDRO GONZAGA

GASOLINA

Em tempos ainda mais turbulentos, haverá um governante que, incapaz de resolver o que os especialistas em palavrório chamam “questões de mobilidade urbana” – e descrente também na utopia do mundo sem motor –, promulgará uma lei que isentará de impostos aqueles que trafegarem com um amigo no carro. Parlamentares farsescamente haverão de bradar ser impossível comprovar a amizade através de um para-brisa.

E o governante dirá um tão esperado “dane-se”. (Havia um cinema em Porto Alegre que cobrava meia-entrada dos casais. Logo havia dezenas de pares de fachada, ao que se instituiu ser preciso trocar um beijo na frente do bilheteiro para comprovar o laço. A exigência de nada adiantou. A moral da história é que mesmo um beijo falso é mais legítimo que boa parte de nossos gestos cotidianos.) Conversas verdadeiras podem acontecer mesmo entre amigos de ocasião.

Com mais pessoas no mesmo automóvel, podemos antecipar o que a alegarão as montadoras, as redes sociais aos tensos anunciantes com o minguar de acessos nos horários de pico, as indústrias farmacêuticas ao perder os negros ouros de seus antidepressivos. Mas a grita será engolida pelos ganhos prontamente visíveis. A começar pela melhora no humor da população.

Virá então um aditivo à lei: No transporte coletivo, amigos juntos pagarão um só bilhete. E depois nos aviões. E quanto aos familiares? Também valeriam como amigos? Às questões espinhosas, o futuro responderá.

Quando me vejo preso em um engarrafamento, quase sempre de carona – sou uma espécie de embaixador da vindoura lei –, lembro-me sempre, como muitos leitores de Cortázar, do conto Autoestrada ao Sul, no qual, sem nenhuma explicação e durante meses, o trânsito para, e as pessoas são obrigadas a voltar a se relacionar como seres humanos, ao tempo em que já são os nomes dos carros que ocupam. Penso muito nisso, durante a tranqueira do fim da tarde na Independência (chegará o dia em que o tráfego será um carro parado em frente a cada garagem).

Nesse momento, que possamos ter a parceria de um amigo ao volante, um Pimenta, um Mozart, um Fábio, aos quais dedico esta crônica a ser inteirada com aquele vintão para a gasolina.

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