sábado, 20 de junho de 2015



21 de junho de 2015 | N° 18201
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Até a língua

Que o Brasil vive sob uma centralização absurda, todo mundo sabe, ou ao menos todo mundo que desconfia do poder central. Gaúchos em geral percebem isso, ainda mais se cuidam de lembrar a força arrebatadora com que a autonomia dos Estados veio sendo amassada. O mais recente golpe pode ser simbolizado na Lei Kandir: o governo federal, no tempo do Collor, 1996, fez passar uma nova lei que isentou de ICMS, um tributo estadual, os produtos de exportação.

Quem ganhou? A conta federal, a balança comercial do país, com o aumento das exportações, desoneradas daquele tributo. Quem perdeu? Os Estados, especialmente os exportadores, como o Rio Grande do Sul, cujo governo perdeu, sem nunca mais recuperar, uma boa capacidade de se financiar e de ter dinheiro para qualquer coisa. (A lei Kandir previa uma indenização, uma compensação aos Estados exportadores, que receberiam do governo federal, ao final de cada ano fiscal, uma parte do que teriam cobrado em ICMS. Nem isso o governo federal paga, desde então.)

Centralização, eis o ponto. A história desse fenômeno vai longe. Terá a ver primeiro com a tradição romana, depois com Portugal e seu jeito de lidar com seu imenso (e frágil) império, e mais adiante com nossa história nacional, marcada desde sempre por uma fortíssima centralização administrativa (e econômica), que cevava apenas uns pequenos grupos de elite em cada província (basta pensar no caso dos Estados nordestinos, considerados genericamente, em que escassos clãs se revezam no poder desde a Independência, ou desde a República) e impedia a formação de classes médias.

Os exemplos são vários. Logo após o 7 de Setembro, se convoca uma assembleia constituinte, em que as províncias teriam voz para finalmente reverter a centralidade do tempo colonial. Discutem e tal, e, por motivos diretamente ligados ao vezo centralista, D. Pedro dissolve a constituinte e define sozinho a constituição do novo país. Províncias com alguma experiência social mais forte, como Pernambuco e Rio Grande do Sul, se rebelam, mas no fim perdem. No começo da república a mesma coisa. E assim até agora.

Pois na França, num campo aparentemente tão trivial e sereno quanto a língua, o país vive um dilema inesperado, ligado à centralização, que é também forte historicamente. Ao longo do tempo, Paris impôs o francês a todos, e precisou fazer força para derrubar línguas menores, regionais, como o alsaciano e o bretão. Esse processo se fortaleceu especialmente depois da Revolução Francesa, e foi cruel – para além do crime histórico de extinguir uma língua, em si, estipulou-se demissão e pena de seis meses de cadeia para funcionários públicos que falassem ou escrevessem outra língua que não o francês.

Agora, o novo dilema: a França deve regularizar internamente sua adesão externa, na União Europeia, à Carta das Línguas Regionais e Minoritárias, que justamente preserva o direito de usar outras línguas que não as do poder central. É matéria vital para vários dos países-membros. A França se reivindica diferente, por exemplo, da Espanha (que precisou reconhecer o catalão e o galego como línguas oficiais, ao lado do castelhano) e de outros países multilíngues, mas vai ter que rebolar para acomodar essa contradição.

Enquanto isso, no Brasil, assistimos ao patético espetáculo da ultracentralização, com ministro e até presidente entregando trator lá no fim do mundo ou inaugurando acesso asfaltado em cidadezinha extraviada no sertão. E ninguém para discutir isso a sério, para viabilizar alguma forma de reverter isso, à esquerda e à direita – todos os partidos parecem se contentar ou com o simples fato de pegar uma beira nessa situação, via fundo partidário, ou com o fato ou a perspectiva de exercer o poder e faturar tendo na mão a chave do cofre.


Não, não sou separatista, nem desconheço que um país precisa redistribuir riqueza entre regiões mais e menos bem sucedidas. Mas quero maior autonomia para os Estados. Nem que seja pelo singelo motivo de que cidades como Porto Alegre são de verdade, têm esquina, telhado vermelho e povo capaz de se manifestar e pressionar o poder, ao passo que Brasília...

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