sábado, 6 de junho de 2015



07 de junho de 2015 | N° 18186 
LUIS AUGUSTO FISCHER


Falta de pai


Não sou especialista na coisa, mas me parece seguro constatar que falta pai no Brasil. Digo no sentido imediato da expressão: são muitos e muitos os filhos sem pai, entre os pobres especialmente, mas não só. Meninos e meninas sem pai conhecido, nascidos de relações sexuais avulsas ou de pai que foge, ou vai preso, ou é morto – entre os mortos da violência urbana brasileira, a esmagadora maioria é de rapazes.

No sentido figurado, também faltará pai? Os pais simbólicos mais evidentes têm lá suas limitações para o papel, ainda tão importante em país jovem como o nosso. Agora a presidente é Dilma, uma mulher, a primeira do país. (O Uruguai teve uma simpática figura de avô em Mujica, bonachão mas firme nas várias paçocas em que meteu o pé.) 

Antes foi Lula, com imagem paterna embaçada, talvez por ser de origem pobre e não inspirar a confiança burguesa do pai vencedor. Antes ainda foi Fernando Henrique, que por outros caminhos também não parece desempenhar bem a figura de pai, nem na versão da potência do mando, nem na versão da figura confiável e segura no meio de tempestades.

Essas considerações vadias me ocorreram ao constatar um trio de órfãos de grande afinidade, na literatura brasileira. De trás para diante, são eles: Riobaldo, de que tivemos notícia em 1956, em Grande Sertão: Veredas, romance magnífico de Guimarães Rosa; Paulo Honório, de que soubemos em 1934, em São Bernardo, de Graciliano Ramos; e Blau Nunes, que conhecemos em 1912, a partir dos Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto.

Por uma estranha coincidência, os três clássicos do mundo rural brasileiro – quer dizer, do mundo cujo centro não era nem o Rio de Janeiro capital do Brasil, nem a São Paulo cidade moderna do século 20 –, guardam entre si o intervalo justo de 22 anos. Bons historiadores costumam adotar o intervalo de 25 anos para uma geração.

Blau Nunes conheceu o pai, e isso sabemos logo no primeiro dos contos, quando em desespero ele vê as estrelas e lembra que seu pai, em criança, já as vira. Mas já não era vivo quando ocorre a cena, Blau já adulto. Em outras duas escassas vezes dá para saber mais sobre filiação, em negativo: ao evocar uma cena de 1865, quando serviu de chasque ao Imperador, Blau jura pela divisa de cabo, que ele chama de seu pai e sua mãe. E bem antes, em 1827, como se lê no sublime conto que é O Anjo da Vitória, Blau tem uns 10 anos e vive com seu padrinho, o que sugere não mais ter pai, ainda menino. E depois, morto o padrinho, Blau se vê sozinho no mundo, “gaudério e gaúcho”. É, então, um órfão do mundo rural que toma a palavra para nos contar das coisas da vida.

Mais claramente órfão é Paulo Honório, que abre sua narrativa, também em primeira pessoa, declarando que em sua certidão de batismo não constam nem pai, nem mãe, só padrinhos. Ao contrário de Blau, porém, o protagonista de São Bernardo ascende socialmente, em trajetória inescrupulosa que o leitor conhece bem.

Na geração seguinte, chega a vez de Riobaldo contar sua vida e pensar sobre o ser, e também sobre o nada. Não era um sartreano, claro, mas era um pensador, feito a facão mas capaz de alcançar alturas tremendas, acima e abaixo do comum dos mortais. Sua filiação é um dos centros de interesse do romance, bem diferentemente dos dois casos anteriores, em que isso é apenas lateral. 

Quando articula cronologicamente seu relato, ficamos sabendo que, do nascimento até a idade adulta, Riobaldo apenas sabia de sua mãe, cujo nome aponta para o mundo índio: Bigrí, perto de “Bugra”. Só mais tarde é que seu pai biológico, que não o criou, aparece em sua vida, e ao morrer o faz herdeiro: é o poderoso fazendeiro Selorico Mendes.

Na outra ponta do Brasil, o Rio de Janeiro, surpresa: também não há pai na mais alta literatura brasileira – mas aqui não é por ausência do homem adulto, e sim por falta de filhos. Em Machado de Assis, percorremos com surpresa e angústia uma galeria de homens sem filho, e com questões sobre isso. Simão Bacamarte, Brás Cubas, Quincas Borba, Rubião, Bento Santiago, o conselheiro Aires: nenhum tem filho! (Ok, o casmurro Bento talvez tenha tido, mas jamais o aceitou como tal.)

Só não sei bem o que isso significa.

Aliás, sei um pouco: o melhor Brasil literário encarou essa ausência com força e em alto estilo, porque teve a boa intuição e a coragem de enfrentar o enigma enunciando-o, trazendo-o para o centro da mesa de conversas. Agora é conosco.

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