terça-feira, 9 de junho de 2015



09 de junho de 2015 | N° 18188
DAVID COIMBRA

Os patos na calçada

Havia uma família de patos na calçada em que eu caminhava, dias atrás. Eles se preparavam para fazer algo perigoso: atravessar a movimentada avenida que os separava do parque do outro lado da rua.

Eu também queria ir até o parque, mas, ao contrário dos patos, vacilava. Não havia faixa de segurança por perto, a avenida é de fluxo rápido, três pistas para cá, três pistas para lá. Ruim de atravessar. Os patos, porém, avançaram sem medo.

Esses patos intimoratos eram uns 30: a mamãe pata, com suas asas cinzentas e seu longo pescoço de um preto lustroso; o papai pato, um pouco maior do que ela, mas da mesma coloração; e um punhado de patinhos de cor ocre.

Famílias de patos são comuns em Boston. A cidade tem vários parques, com patos às dezenas em quase todos. Num deles, o Public Garden, o primeiro jardim botânico da América, há uma popular escultura que os homenageia. É uma pata seguida por oito filhotes de bronze. No inverno, os bostonianos amarram cachecóis nos pescoços dos patinhos. Muito simpático.

Outra ave que se vê facilmente pelas ruas, vivendo com curiosa independência, é o peru. Os pioneiros, quando chegaram da Inglaterra, no começo do século 17, enfrentaram invernos terríveis, passaram necessidades e aprenderam com os índios massachusetts a matar a fome com a carne escura do peru. Assim que obtiveram sua primeira grande safra, comemoraram comendo, exatamente, peru assado, e assim surgiu o Dia de Ação de Graças, que goza de mais prestígio entre os americanos do que o Natal. Os perus continuam por aí, passeando tranquilos pelas ruas de Boston. Os índios, não – mas o Estado leva o nome do povo deles, se é que é consolo.

O peru é um bicho solitário. O pato, não. Patos são muito ligados à família. Essa que encontrei na calçada foi das maiores que já vi. Talvez fossem até duas mães, duas famílias, e não um pai e uma mãe. De qualquer forma, o que interessa foi o que eles fizeram: a mamãe pata simplesmente desceu o cordão da calçada e foi para o leito de asfalto. Estremeci. Os carros zuniam a uns 80 por hora. Seria impossível um único pato percorrer todas aquelas pistas sem ser atingido, imagine 30!

Pois a pata não quis saber: foi em frente. Patinhos, por algum motivo, andam em fila indiana atrás da mãe. Se andassem ao lado, teriam mais chances de sobrevivência, mas uma tripa de três dezenas de patos se estende por muitos metros, pode ser atingida por muitos carros ao mesmo tempo.


Pensei em correr em direção aos patos e espantá-los, ou gritar para os motoristas, sei lá, fazer alguma coisa, mas, antes de qualquer reação minha, um carro reduziu a velocidade e parou. Ao lado dele, encostou outro carro. E mais um na pista contígua. E outro ainda. E, atrás, dezenas de carros se detiveram, enquanto a grande família de patos atravessava a avenida calmamente, as caudas balançando, os bicos erguidos, como se sentissem orgulho por terem se imposto às máquinas do Homo sapiens. 

Era a mamãe pata na frente, o papai pato por último e, entre eles, os pequenos, todos serenos, sem pressa, firmes, até o verde do parque. Dentro dos carros, os motoristas esperavam sem demonstrar irritação. Alguns até sorriam. Quando o último pato estava em segurança, na calçada, o trânsito voltou ao normal. Segui meu caminho, também, e segui satisfeito. Aquela cena trivial não havia sido uma vitória dos patos. Havia sido uma vitória da civilização.

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