03
de janeiro de 2015 | N° 18031
PALAVRA
DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
PODES ME
OUVIR?
A escassa cultura médica sobre transplantes implica,
muitas vezes, encaminhamentos tardios
Um
telefonema interurbano para falar de transplante quase invariavelmente é
prenúncio de sofrimento, de angústia, de corrida perdida contra o tempo, de
nada por fazer.
A
escassa cultura médica sobre o procedimento e a noção equivocada de que
transplante é terapia do desespero implicam, muitas vezes, encaminhamentos
tardios. Disso decorrem injustificáveis mortes durante a realização dos exames
para avaliar a indicação do transplante em pacientes portadores de doenças que
evoluíram ao longo de anos. Outras vezes, a consulta pretende apenas afastar
qualquer possibilidade de culpa por omissão no futuro. E isso se previne com a
certeza de que tudo o que era possível foi tentado.
Quando
o paciente é mais velho, é comum que a informação de que o transplante é
inviável naquela idade seja seguida de um indisfarçado suspiro de alívio.
“Porque é certo que faríamos tudo o que fosse necessário, mas se não é
possível, temos de nos conformar, não é, doutor?” Pois é. Depois de muitos anos
trabalhando com pessoas no limite do desespero, podemos ter a sensação de que,
afinal, conhecemos a floresta, mas sempre haverá chance de uma surpresa, e a
vida que surpreende é a que conta.
O
telefonema começou com um tom de voz a denunciar que aquela era a primeira
frase depois de um choro prolongado. As palavras eram entrecortadas, arranhavam
na garganta. Desliguei o DVD, aquela não era conversa para se resolver num
simples pause.
No
fim, não pude fazer nada para ajudá-los, o câncer da Eduarda nunca tinha sido
de fato controlado e as lesões pulmonares decorrentes das drogas da
quimioterapia eram apenas um atalho no caminho inexorável para a morte. Ouvi-la
descrever a dor de uma mãe assistindo a morte diária da filha liquidou com
minha semana. Passados alguns meses, agora véspera de Ano-Novo, ela resumiu bem
o nosso convívio virtual, solidário, soluçado, doloroso.
“Final
de ano, aproveito para mandar uma mensagem, já devia tê-lo feito antes.
Sou
Sandra, mãe da Eduarda, paciente do doutor Leonardo. Talvez se lembre do meu
último contato, em 30 de abril, um telefonema em caráter de desespero e apenas
para atender pedido de um colega médico que não se conformava com a triste
evolução da Eduarda.
Certamente,
quando disquei, sabia que nada havia por fazer que fosse relacionado a
transplante pulmonar. Mas mesmo assim liguei e, para minha surpresa, fui de
imediato atendida pelo senhor, que parecia estar esperando minha chamada e, com
amor, carinho e paciência, me explicou o que era óbvio, mas teve a
sensibilidade de entender o desespero da mãe com uma criança agonizante, com
uma morte anunciada e até desejada, diante de tanto sofrimento. Mas quero dizer
que aquele não foi o nosso contato mais importante.
A
sua figura significou, para Eduarda e nossa família, esperança, sem a qual não
teria sido possível continuar vivendo. Tínhamos de cumprir várias etapas para
chegarmos a Porto Alegre. A última seria a segunda prótese de quadril, agendada
para a semana seguinte à da sua morte. Quero agradecer a gentileza de ter
respondido todos os meus e-mails e me orientado. Se não chegamos a Porto
Alegre, foi porque esse não era o nosso destino. Muito obrigada pela sua
grandeza, mesmo não nos conhecendo, fez parte da nossa vida em 2014.
Desejo-lhe
um feliz 2015. E que Deus cuide da sua família com o carinho que roguei tanto
que cuidasse da minha. Abraços, Sandra”.
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