sábado, 17 de janeiro de 2015


18 de janeiro de 2015 | N° 18046
ISMAEL CANEPPELE

Tia Rita

O mundo vive uma explosão no consumo da Ritalina. Ou metilfenidato. Tia Rita, para os entendidos. Só entre 2002 e 2006, a produção cresceu 400%. É o estimulante mais consumido no mundo. O Brasil é o segundo maior consumidor, e não para de crescer. Se em 2003 consumimos 94kg, em 2002 foram 875. Já atingimos a marca da uma tonelada. A indústria fatura alto, receitando a medicação, principalmente, para crianças.

Tem sempre algum conhecido recebendo a visita da tia Rita. Alguns deslumbrados com a presença, outros, fazendo o possível para se livrar dela. A tia opera milagres nos problemas de obesidade das mulheres. É melhor que drenagem linfática. Com a ansiedade controlada, a vontade de comer passa. Os homens ficam focados. Produzem mais no trabalho. Deixam de ser estabanados em casa. As crianças, antes dispersas, como convém à idade, agora obedecem. Tia Rita, quando chega, dá dor de barriga. Mas depois acostuma.

Tia Rita vai ficando. É a visita que sempre fica tempo demais. Ocupa mais espaço do que deveria. Arranca a intimidade da casa. A tal da solidão. Tia Rita está na cozinha, sentada na mesa, cuidando de tudo. Deitada no tapete da sala, prestando atenção aos discos que ninguém nunca escutou. Ou dividindo o mesmo colchão.

O metilfenidato pode causar reações adversas no sistema nervoso central. Psicose, alucinações, convulsões, sonolência, ansiedade e, até mesmo, impulso suicida. A Ritalina também causa o “efeito zumbi”. Droga da obediência, cai como uma luva para aqueles pais que não sabem como fazer o pequeno prestar atenção na escola, na aula de música, no cursinho de inglês, nas artes e na luta. Tudo em um só dia, que é para o pequeno ficar bastante ocupado. Sufocados em atividades, acabam perdendo, logo na primeira infância, a possibilidade do nada. O tal do ócio. Filho fazendo nada é, ao lado d’água paulista, o suprassumo do alto luxo contemporâneo.

“Por que legar à mãe a função de cuidadora do ninho? E se ela não quiser. Se ela quiser se separar, deixar os filhos com o pai, e experimentar uma vida em que a solidão seria o mais importante? Só ao homem é legítimo estar só. Não às mães”, reclama uma amiga sem saber o que fazer com a família que, subitamente, passou a fazer parte dela. O pequeno tem cinco. Foi insuportável até os quatro. Passou a receber visitas diárias da tia Rita. Tornou-se um anjo. Nem mesmo foi preciso educá-lo. Não demorou muito, e minha amiga também ficou a fim de conhecer a tia do filho. Engoliu o primeiro comprimido e foi apresentada ao maravilhoso mundo do “então era isso!?”.

O médico a considerou apta a receber as visitas e deu no que deu. Mãe e filho passam longas noites juntos. Ele jogando videogame com a tia Rita. Ela cozinhando para ninguém. Antes de dormir, joga tudo no lixo. Perdeu a fome. Ela e a tia Rita estão de dieta. Uma ajuda a outra. Depois, mãe e filho dormem juntos na mesma cama. O conforto é um presente do comprimido.

Segundo a ONU, a produção de Ritalina no mundo gira em torno de 38 toneladas. Do total, 34,6 são produzidas pelos Estados Unidos, que consomem 86,2% da sua produção. A Polícia Federal norte-americana registrou um aumento no número de adolescentes e adultos jovens que fazem uso sem prescrição. Aproximadamente 3.601 atendimentos dos pronto-socorros em 2010 estavam relacionados ao uso indiscriminado do metilfenidato, e 186 mortes ligadas ao uso do medicamento, só nos Estados Unidos. Dr. Luiz Alberto Chaves de Oliveira, coordenador de Políticas Sobre Drogas no Estado de São Paulo, diz que “de 30% a 50% dos jovens em tratamento por dependência química relataram já ter abusado de metilfenidato, pois acreditam que os efeitos são semelhantes ao da cocaína, também estimulante”.

Apesar de haver discordância sobre a semelhança entre Ritalina e cocaína, o abuso da tia Rita tem sido documentado entre dependentes químicos americanos, que chegam a dissolver comprimidos em água para injetar nas veias. Quando injetados, os componentes bloqueiam vasos sanguíneos, causando sérios danos aos pulmões e à retina. Pesquisa da FDA (Food and Drugs Administration), órgão de vigilância sanitária dos EUA, e do NMH (National Institute of Mental Health), feita em 2009, revela que o risco de morte súbita para adolescentes que tomaram Ritalina é de 10 a 14 vezes maior do que para aqueles que nunca foram medicados.


Tia Rita é importantíssima para quem precisa. Mas nem todo o mundo pode morar com ela.

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