20
de janeiro de 2015 | N° 18048
ARTIGOS
- J.J. CAMARGO*
O RISCO DE SER
CHARLIE
Quando
o cartunista dinamarquês ironizou o profeta Maomé há alguns anos, ficou
evidente que havia uma provocação com intenção de estabelecer limites de
tolerância. Por aquela brincadeirinha, muitas pessoas morreram e seu governo
ainda gasta fortunas para mantê-lo distante da sanha dos ofendidos. A lição que
se esperava aprendida: os muçulmanos não respondem a ofensas com versos.
É
provável que aos destemidos esse sinal amarelo tenha acrescentado estímulo à
continuidade, porque agora havia um risco a enriquecer o desafio. Mas o direito
à liberdade de expressão não podia ter ignorado a advertência, podia, sim,
admitir que este era um risco calculado, um tipo de energia que tem incontáveis
adeptos, seja em práticas euforizantes como o alpinismo ou degradantes como o
tráfico de drogas.
De
uma civilização que amputa a mão ladra não se pode esperar a mesma benevolência
dos que concedem liberdade condicional ao político corrupto acusado de desviar
a verba da merenda escolar.
É um
exagero de otimismo imaginar que a caricatura do seu líder religioso sentado no
vaso ou com a genitália exposta possa divertir uma sociedade que apedreja
adúlteras. Então, tudo se pode dizer da chacina que abalou a França e chocou o
mundo ocidental, menos que ela tenha sido imprevista.
Da
mesma maneira, o traficante que preferiu abandonar a tranquilidade da porta das
escolas brasileiras, onde tudo é permitido sem risco maior do que prisões
fugazes, e buscar o tráfico na Indonésia onde a perspectiva de lucro é muito
maior, mesmo sabendo que lá a pena de morte é uma promessa sempre cumprida. Mas
de novo o desafio do risco calculado e provocador.
Fiquei
pensando na dor da pobre mãe apelando aos sentimentos humanitários de seus
governantes, que, se chegaram a contatar com Jacarta, o fizeram
constrangidamente porque a causa não era das mais nobres. E me condoí com a
inutilidade do seu amor desperdiçado.
Porque
a chance de sucesso daquele apelo era tão improvável quanto a de recuperar um
traficante de 53 anos, ainda que se saiba que os pais nunca desistem de
transformar os filhos em criaturas melhores do que, de fato, jamais serão.
*Médico
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