sábado, 17 de janeiro de 2015


18 de janeiro de 2015 | N° 18046
ROBERTO DAMATTA

Sou Charlie e antropólogo

A eliminação do Charlie Hebdo por dois jovens radicais islâmicos em paralelo ao ataque com reféns a um mercado judeu por outro extremista confirma o inesperado – esse traço com o qual a vida se faz e que marca todas as vidas.

O evento abominável levou-me à Paris idealizada de onde recebi um cartão-postal com os desejos de um feliz 2015! Pensei no meu amigo vivendo o charme parisiense ser englobado pelo terrorismo, que suspende a plausibilidade das rotinas, e percebi uma mudança no jogo contínuo e necessário das nossas identidades. A Paris simbolizada pela racionalidade foi roubada pelos radicais islâmicos, que não aceitam a ética da liberdade conquistada e declarada como universal justamente na França.

A tragédia engendrou a oposição entre ser civilizado (Charlie) e francês ou ser muçulmano (radical). A configuração do ser humano em papéis sociais a serem desempenhados livremente num mundo que se supõe aberto e progressista, viu-se reduzida por uma clássica dualidade. Agora, todos somos franceses (vítimas e aparentemente cristãos) ou radicais islâmicos. Eis o triunfo dos extremismos, que têm resposta para tudo e só admitem a verdade do seu credo.

Somem as escolhas quando a liberdade é assassinada em nome de uma guerra religiosa. Ela também demonstra que o maior medo dos radicais não é um outro radicalismo, mas o riso e o humor que carnavaliza e sublima.

Vi o terremoto cosmológico promovido pela imobilidade irreversível da morte. Algo aterrorizante porque um lado da questão foi violentamente eliminado, como mostra a literatura mais do que as “ciências sociais”, num mundo construído para esquecê-la (e superá-la pela ciência). Eis, suponho, um dos focos da vertigem: a recusa em escutar num mundo interligado por próteses que incessantemente prometem resolver problemas. Esquecidos de que informação exige a abertura para o alternativo e um esforço de compreensão, vivemos a insegurança e a revolta.

Sou Charlie porque o massacre esfrega na minha cara o paradoxo da imobilidade das crenças – essa dimensão básica dos radicalismos e da própria humanidade –, num mundo marcado por muitas línguas, crenças e conjunturas que as desafiam. Liberal, aceito a liberdade de ofender com palavras, não com tiros.

Mas o que é, afinal, esse esplêndido Ocidente se não a prova do movimento corajoso das crenças para as ideologias políticas e científicas libertadoras dos credos religiosos, mas criadoras de déspotas, guerras mundiais, holocaustos e racismos? Não se pode negar o avião ou um antibiótico, mas não se pode esquecer que só o descrente acredita que o crente acredita em Deus; pois, para ele, sua crença é conhecimento concreto.

Mas não seria uma outra crença e um outro radicalismo imaginar uma humanidade sem crenças? Uma pessoa sem uma língua ou valores seria um ser inclassificável. Ela denegaria a nossa humanidade que, conforme acreditamos, tem direito à liberdade de ser radicalmente descrente e capaz de todas as heresias.

Sendo Charlie, mas sem deixar de ser antropólogo, lembro-me de Lévi-Strauss, quando ele ressaltava o etnocentrismo. O fato de que nossas línguas e crenças nos constituem como centros do mundo. Os ameríndios viram os espanhóis como deuses e estes – Conquistadores! – duvidaram se aquelas criaturas tinham alma e seriam seres humanos de verdade.

Vejam a ironia: a era das grandes descobertas marítimas – os séculos 15 e 16 –, com consequente catequese e destruição das civilizações e culturas do chamado Novo Mundo, coincide significativamente com as guerras religiosas na Europa, as quais – por seu turno –, freudianamente, repetem as guerras santas e jihadis entre cruzados e infiéis islâmicos, iniciadas no final do ano mil. Seria um exagero dizer que a noite do massacre de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572), quando foram mortos 2 mil protestantes na contagem católica e 70 mil na contagem protestante, foi o evento fundador do fundamentalismo ocidental. Dele, foram paridos outros radicalismos que não admitem meio termo, indecisão, mais ou menos ou incomensurabilidades como ser materialista e ter Exu como padrinho. Ser um “respeitador de todas as crenças”, como dizia mamãe sem saber, mas sabendo, que a incerteza (que suspende uma identidade como algo exclusivo e arrebatador), é a matriz da moderação.

Mamãe sorria das minhas convicções radicais. Para ela, tudo tinha conserto.


Hoje, velho e suspeitoso por oficio do óbvio ululante, continuo um crente na liberdade como um valor e no valor da liberdade. Mas estou profundamente decepcionado. Minha esperança é que o bom senso vença a fúria radical.

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