12 de janeiro de 2015 |
N° 18040
L. F. VERISSIMO
Charlie
Alguém já disse que cidade
civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar
aberto para tomar uma sopa e comprar um jornal. Outro disse que cidade
civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto
para tomar uma sopa e comprar o Pravda. Para mim, cidade civilizada é aquela em
que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto para tomar uma
sopa e comprar o Charlie Hebdo ou similar, o que exclui todas as outras cidades
do mundo salvo Paris.
O Charlie Hebdo e outros, como o
Canard Enchainé, pertencem a uma tradição de imprensa malcriada que vem desde
antes da Revolução Francesa. É uma imprensa que não reconhece limites, nem de
alvos para o seu humor corrosivo nem de coisas vagas como “bom gosto”. Lembro
uma capa que ficou famosa, já não sei mais se do Charlie ou do Canard, que era
o seguinte: fotos dos órgãos genitais de várias pessoas, com legendas embaixo
especulando de quem seriam os órgãos. Entravam na lista políticos, astros e
estrelas e até o Papa.
Charlie Hebdo é uma revista
nitidamente de esquerda, mas que nunca livrou a esquerda das suas gozações. Seu
alvo preferencial é a direita religiosa francesa, mas de uns anos para cá ela
vem incluindo o fundamentalismo islâmico nas suas críticas – mesmo com o risco
de atentados como o que acabou acontecendo na quarta-feira, que foi o mais
trágico mas não foi o primeiro. Revistas como Charlie, impensáveis em qualquer
outro lugar, se beneficiam de outra tradição francesa, a da tolerância com a
contestação política e o respeito à liberdade de expressão.
Por ironia, o atentado de
quarta-feira deve fortalecer a direita xenófoba e anti-Islã da França,
justamente a que o Charlie mais combatia. O cartunista Wolinski e os outros
morreram pelo direito de serem livres, totalmente livres, mas seus assassinos
não tinham nenhuma tradição parecida com a da França para conter o dedo no
gatilho. No fim, os mortos do Charlie podem virar mártires de uma causa
inimiga. Uma ironia que todos eles dispensariam, se pudessem.
Quando a turma do Pasquim foi
presa pela ditadura, houve uma mobilização para mantê-lo nas bancas. Muita
gente, arregimentada, entre outros, pela Baby Oppenheimer, então casada com o
Tarso de Castro, colaborou. Até meu pai participou do mutirão solidário. Não
sei se alguma coisa parecida está sendo organizada para ajudar o Charlie. Se
verá na próxima edição do semanário, que será histórica.
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