31
de janeiro de 2015 | N° 18059
DAVID
COIMBRA
Caetano, Gil, Roberto e Cenair
Maicá
No
fim dos anos 60, a
ditadura trancafiou Caetano Veloso numa cela de cadeia, raspou os caracóis dos
seus cabelos e, depois de dois meses, meteu-o num avião para Londres com a
advertência feita em tom grave pelo agente que o levou ao aeroporto: “Melhor
não voltar”.
No
exílio, Caetano ficou triste como um passarinho sem par. Seu amigo Gilberto Gil
sentia-se bem, parecia adaptado à vida na Velha Álbion, mas Caetano só pensava
no Brasil. Uma manhã, ele recebeu um telefonema: Roberto Carlos estava na Ilha
e queria visitá-lo.
Encontraram-se
à noite. Estavam todos, o trio de artistas e respectivas famílias, na sala da
casa de Caetano. Roberto, então, tomou do violão e pediu licença para mostrar
uma música que ele havia composto havia pouco tempo, e que logo pretendia
gravar. Caetano e Gil concordaram, é claro, e Roberto começou a cantar. Em meio
à canção, Caetano prorrompeu num choro emocionado. A música foi até o fim, mas
o choro de Caetano não parou. Ele chorou muito, muito, tanto que ninguém cantou
mais nada naquela noite.
A
música que Roberto cantou em público pela primeira vez foi As Curvas da Estrada
de Santos.
Essa
canção tem uma imagem de que gosto muito: “Eu prefiro as curvas da estrada de
Santos, onde eu tento esquecer um amor que eu tive e vi pelo espelho na
distância se perder”. Fico imaginando Roberto ao volante, olhando pelo
retrovisor e vendo o reflexo da amada desaparecendo enquanto o carro avança.
Mas
não foi por lembrar de um amor perdido que Caetano chorou. Foi porque, em suas
palavras: “Quando Roberto entrou por aquela porta, foi bonito: foi como se o
Brasil estivesse entrando na minha casa”. E, no instante em que Roberto cantou,
a música tornou líquido o sentimento de Caetano.
Caetano
chorou de nostalgia do Brasil.
A
música tem esse poder, tem essa conexão direta com o sentimento.
Nesta
semana, durante a tempestade que soterrou a Nova Inglaterra em um metro de
neve, enquanto os flocos brancos flutuavam no céu, o Antônio Carlos Macedo
entrou ao vivo no Timeline da Gaúcha e citou um nome que há muitos anos eu não
ouvia pronunciar: Cenair Maicá.
Cenair
Maicá foi um dos grandes da música gaúcha de todos os tempos, um compositor de
poesia poderosa como poucos há ou houve no Brasil. Um Caetano Veloso
missioneiro.
Numa
época em que morava em Santa Catarina, eu tinha de acordar bem cedo, cinco da
madrugada, para ir trabalhar. Enquanto tomava banho, sintonizava numa rádio
regional, que, naquele horário, tocava músicas gaúchas, e que todos os dias
rodava algo do Cenair Maicá. Todos os dias.
Eu,
em Santa Catarina, tão perto da minha cidade natal, ouvia o Cenair Maicá e me
dava certa nostalgia do Rio Grande do Sul e pensava: quando voltar, vou
entrevistar o Cenair Maicá. Não consegui. No ano em que estava voltando, Cenair
Maicá morreu.
Agora,
aqui, tão longe, do outro lado do mundo, ouvi falar de novo no nome de Cenair
Maicá e lembrei daquele tempo e cheguei a cantarolar alguns daqueles versos:
“Hoje estou disposto a tudo, envergo a melhor bombacha, nas botas eu passo
graxa e englostoro as melenas!”. Eu, nos Estados Unidos, cantando Cenair Maicá,
senti-me como Caetano no exílio da Velha Inglaterra vendo Roberto chegar: foi
bonito. Foi como se o Rio Grande entrasse na minha casa.
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