14
de janeiro de 2015 | N° 18042
FÁBIO
PRIKLADNICKI
GRANDES EXPECTATIVAS
Em
uma das cenas mais intrigantes do documentário Nelson Freire (2003), o grande
pianista mineiro confessa: “Olha, eu tenho uma inveja de quem sabe tocar jazz
incrível”. Então, o cineasta João Moreira Salles enquadra a gargalhada de
satisfação de Nelson ao assistir, em sua televisão de tubo, a uma apresentação
em preto e branco do famoso jazzista Erroll Garner, improvisando ao piano com
um sorriso maroto.
“A
alegria!”, exclama Nelson, “a alegria de tocar!” E completa: “Os pianistas clássicos
de antigamente tinham essa alegria. Rubinstein tinha isso, Horowitz tinha isso
também. Guiomar Novaes tinha isso. Martha Argerich tem isso”. Nesse momento, o
entrevistador interrompe: “E você?” Nelson responde com uma expressão facial
vaga.
Assistir
a esse trecho do documentário é uma lição de vida porque nos acostumamos a
pensar que um artista do porte de Nelson Freire jamais teria uma frustração
musical na vida. Mas eis o fato: um dos maiores pianistas clássicos de todos os
tempos gostaria de ter a alegria de tocar de um pianista de jazz ou mesmo de
alguns de seus ídolos na música de concerto.
Costumamos
utilizar nossas pequenas ou grandes frustrações como medida daquilo que se
convencionou chamar de felicidade. O mesmo ocorre com nossas expectativas em
relação às pessoas com as quais vivemos. O empresário bem-sucedido que queria
ter escrito um grande romance, a profissional liberal que gostaria que o marido
falasse francês ou o garoto que tem muitos brinquedos mas deseja mesmo aquele
que seus pais não compraram. Estamos sempre querendo mais, talvez por causa da
ideia (vinda sabe-se lá de onde) de que chegaria um dia na vida em que nos
sentiríamos completos e que nossos parceiros partilhariam dessa plenitude
conosco.
Mas
o que chega mesmo é o momento em que precisamos admitir que as coisas não
funcionam assim. Temos mais desejos do que conseguimos realizar e mais
expectativas do que os outros são capazes de corresponder. E isso é ótimo,
porque nos mantém em movimento.
O
psicanalista britânico Adam Phillips defende a tese de que as vidas que não
vivemos – aquelas com as quais apenas sonhamos – fazem parte de nós tanto
quanto aquela que realizamos. Entender essas frustrações em relação a nós
mesmos e em relação às pessoas que amamos como parte integrante da experiência
na Terra é um exercício sofisticado que só a maturidade permite. Todos têm seu
Erroll Garner, mas apenas alguns desenvolvem a capacidade de admirá-lo.
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