17
de janeiro de 2015 | N° 18045
CLÁUDIA
LAITANO
A regra do
jogo
Volta
e meia surge no ar a nostalgia de um tempo em que aparentemente quase tudo
podia ser dito sem maiores consequências. Renato Aragão, não sem certa
ingenuidade, afirmou em uma entrevista recente que, na época em que Os
Trapalhões faziam sucesso na TV, negros, gays e gordos não se ofendiam com as
piadas – assim como ele próprio não se ofendia com a gozação com os
nordestinos.
Comediantes,
jornalistas, intelectuais, professores, todo mundo reclama do politicamente
correto, que teria vindo para complicar a vida de quem escreve, faz humor ou
atua em qualquer outra arena do debate público – mesmo que na esfera limitada
de uma sala de aula ou de uma rede social. Tudo o que se faz (ou se fez)
tornou-se passível de escrutínios e interpretações, muitas vezes equivocados ou
mesmo mal-intencionados, e nossa reputação nunca foi tão frágil.
Culpa-se
genericamente a “caretice generalizada” pelo cerceamento da liberdade de se
expressar sem se preocupar em ferir suscetibilidades, e “politicamente correto”
tornou-se o correspondente da virose no mundo das ideias: uma expressão
desacreditada pelo excesso de uso.
Seja
pela patrulha incansável dos descontentes, seja pela facilidade com que uma
faísca vira um incêndio no palheiro das redes sociais, o debate público
tornou-se mesmo mais complexo e polifônico: não há rei da cocada preta que
possa dizer o que lhe der na telha sem sofrer consequências imediatas. Na época
dos Trapalhões, admitindo-se que uma pequena parte dos espectadores ficasse
ofendida com as piadas, essa minoria teria pouca ou nenhuma chance de se
manifestar. Hoje todo mundo tem um trombone no bolso, e há boas chances de que
um anônimo indignado consiga obrigar uma celebridade a vir a público para pedir
desculpas pelo que disse ou fez. Goste-se ou não, é do jogo.
Reações
acaloradas são do jogo, assim como decidir ignorá-las. Leituras equivocadas são
do jogo. Reclamações, xingamentos, abaixo-assinados e processos são do jogo –
por mais absurdos e sem cabimento que possam parecer. O que não é do jogo e não
pode ser tolerado é o uso da violência e qualquer reação que saia do plano das
ideias para o plano da porrada ou da coerção.
Nos
últimos dias, houve quem achasse oportuno comparar-se às vítimas do Charlie
Hebdo por ter sofrido consequências por suas opiniões – sem que a República
tivesse saído às ruas em sua defesa, ou muito antes pelo contrário. O argumento
marcha mais ou menos da seguinte forma: onde estavam vocês, defensores da
liberdade de expressão, quando fui espinafrado? Ora, batatas, no mesmo lugar!
Defender a liberdade de expressão não significa, obviamente, lavrar em cartório
um contrato abrindo mão de fazer críticas a quem pensa diferente ou usa um tipo
de linguagem considerado ofensivo. Pelo contrário: liberdade de expressão serve
exatamente para isso, para que todos possam ser cobrados, criticados, esculhambados
até, pelo que dizem ou pelo que fazem – respeitados os limites da lei.
Não
sabe brincar, não desce pro play.
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