sábado, 17 de janeiro de 2015


18 de janeiro de 2015 | N° 18046
MOISÉS MENDES

O seu lugar no mundo

André Malraux é um dos grandes da mitologia francesa. Lutou na guerra civil espanhola, participou da Resistência à ocupação nazista, foi ministro da Cultura de De Gaulle e escreveu A Condição Humana.

Nasceu em 1901 e morreu em 1976. Teve tragédias pessoais terríveis. O pai se matou, os dois filhos morreram em acidentes de carro, os dois irmãos tombaram na Resistência, um trem passou por cima da segunda mulher.

Guerreou, teve amores variados, refletiu sobre o que é ser francês e sobre as diferenças culturais entre europeus e asiáticos e, num determinado momento – antes de se consagrar como escritor e pensador político –, em defesa dos países ocupados, passou a atacar a França colonizadora.

Mas, bem antes disso tudo, aos 22 anos, quando já se diferenciava como um jovem intelectual em Paris, Malraux foi saqueador. Em 1923, embrenhou-se como aventureiro na selva do Camboja, com a mulher e um amigo, e invadiu templos para roubar obras da arte Khmer.

Pretendia vendê-las a museus e colecionadores americanos. Foi preso e condenado a três anos de prisão como ladrão. Uma mobilização de escritores amigos conseguiu evitar a execução da pena.

Essa história é conhecida – está contada em Assinado, Malraux, a biografia escrita por Jean-François Lyotard (Record, 1997) – mas não constrange os franceses. O Malraux que ficou é grandioso, apesar de a esquerda o rejeitar como o ex-comunista que virou gaullista.

E por que falar de Malraux agora? Porque é considerado um dos mais densos e um dos primeiros pensadores dos conflitos culturais contemporâneos entre o que se define como Ocidente e Oriente – num tempo bem anterior ao da imigração em massa de muçulmanos para a Europa, do terrorismo e das charges sobre Maomé.

Malraux esforçou-se para entender o que é, afinal, o território de cada um no mundo. De onde eu, você e seus vizinhos somos e o que nossas origens e nossas culturas significam num ambiente que muitas vezes não é o nosso e que talvez nunca venha a ser.

É o que os imigrantes se perguntam, como viventes ou não de antigas colônias, na Europa que os acolhe e ao mesmo tempo os hostiliza. Se há menos de cem anos territórios considerados primitivos e sua arte “sem dono” eram propriedade dos europeus, por que quase nada da Europa da civilização parece lhes pertencer?

Malraux morou no Camboja e na China. Escreveu A Tentação do Ocidente, ainda jovem, sobre uma imaginária troca de correspondências entre um chinês e um francês. O que são um e outro, o que um pensa do outro?

No romance A Condição Humana, de 1932, sobre o início do levante comunista na China, o militante Tchen decide, logo no começo do livro, que vai matar alguém, de forma traiçoeira e covarde, para levar uma ideia adiante.

Um parceiro o questiona: “Você quer fazer do terrorismo uma espécie de religião?”.

Quem quiser ir adiante, para saber mais sobre selvagerias cometidas em nome de ideias, que leia o livro.

O que Malraux diria hoje da confusão criada pelas charges sobre Maomé e da comoção com o massacre de Paris?


Malraux não se espantaria de saber que há cada vez mais gente dizendo a quem estiver ao lado: este é o meu lugar, mas talvez não seja o seu lugar no mundo.

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