01
de fevereiro de 2015 | N° 18060
MARTHA MEDEIROS
INVERSO
Ela
me contou que morou durante toda a infância bem no centro da cidade, num
apartamento pequeno de uma grande avenida, e cresceu escutando as conversas e
gritos dos transeuntes lá embaixo, os motores dos ônibus, as portas do comércio
abrindo e fechando, as brigas entre os camelôs, e nem à noite esse zumzumzum
sossegava, pois havia os cinemas, as boates, os botecos, as prostitutas, um
quartel com ininterrupto entra e sai de soldados e uma igreja ao lado cujo sino
não conhecia descanso.
Se
dava para dormir? Feito um anjo. Cada barulho específico da zona central era
como se fosse um instrumento musical, e juntos eles compuseram sua cantiga de
ninar. A tudo se acostuma.
Até que
ela virou mulher, casou e foi morar num bairro tão distante do centro que era
praticamente uma granja, e quem dizia que conseguia dormir? O silêncio, ali,
era barulhento além da conta.
Um
cachorro latindo ao longe, no meio da madrugada, bastava para lhe despertar. O
farfalhar das folhas ao vento, numa árvore próxima à janela, a deixava em
estado de alerta. Podia até ouvir uma estrela cadente se prestasse bem atenção.
Como pegar no sono estando envolvida por tantas quietudes secretas, por tanta
discrição?
Não
foi bem com essas palavras que ela me contou sobre essa situação invertida, mas
foi desse jeito que a escutei, com essa prosa e poesia, e também com algum
espanto. Se barulho virou silêncio através do costume, e se silêncio virou
barulho pelo mesmo motivo, então está tudo mesmo de cabeça para baixo?
O
que mais era pra ser que não é?
A
pessoa muito calada, com um sorriso fixo no rosto, pacienciosa com todos em
volta, relaxada num corpo em repouso, estará mesmo calma? Pode ser que por
baixo de sua pele o barulho seja infernal, a dor lateje, o coração grite e ela
apenas esteja inerte para não chacoalhar ainda mais o desespero que leva dentro.
Enquanto que aquela pessoa que dança, corre, abraça, ama, gargalha, viaja e se
joga na vida é o quê? Budista.
A pessoa
que anda sumida é uma ermitã ou será que está muito bem acompanhada por si
mesma? E quem não desgruda de grupos será mesmo sociável ou carente ao extremo?
Acho
que eu gostava mais da vida quando ela era como era, exata, e não como é agora,
quando traz em si o seu contrário, nos obrigando a ler nas entrelinhas,
entender os subentendidos, perceber o abstrato e desprezar o concreto – eu
preferia o óbvio a tanta charada, eu preferia o cristalino ao lusco-fusco, eu
gostava quando era mais fácil e as coisas e as pessoas cumpriam o prometido.
Quando
foi isso? Nunca. Nunca foi como eu queria. Sempre foi o inverso.
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