sábado, 24 de janeiro de 2015


25 de janeiro de 2015 | N° 18053
MOISÉS MENDES

O escritor e o surfista

Uma pergunta que fizeram certa vez a Truman Capote: se tivesse que viver num único lugar, sem nunca mais poder sair dali, que lugar seria este? O escritor escolheu Nova York, que seria a única cidade do mundo, considerando-se todas as grandes, que não é provinciana.

Capote disse gostar até do barulho constante das sirenes em Nova York. Não moraria em Paris, “puritana e rabugenta”, nem em Londres, porque todo mundo se conhece, é demasiadamente civilizada e totalmente sem graça.

Em Nova York, ele teria 10 pessoas diferentes no mesmo grupo ou 10 grupos de pessoas diferentes, a qualquer hora do dia ou da noite, num bar, numa loja ou na rua.

Na semana passada, fiquei pensando nisso, no lugar em que se quer morar, mesmo que nem sempre se consiga, ao ler o manifesto que o surfista catarinense Ricardo dos Santos, o Ricardinho, escreveu em 2011. Ele diz no texto, publicado na internet, que a Guarda do Embaú, onde nasceu, onde se criou e aprendeu a arte que lhe deu fama nacional, estava pedindo socorro.

Ricardinho repelia a invasão de predadores que sujam a praia, afrontam o vilarejo com som alto nos carros e assustam os moradores com grosserias. O surfista foi morto na última semana por um desses invasores. O título do manifesto de quatro anos atrás é “SOS Guarda do Embaú”.

Ricardinho foi morto a tiros, aos 24 anos, no lugar onde, pelo tom do manifesto, se tivesse que escolher, viveria para sempre. O surfista defendia a preservação de virtudes que Capote desprezava.

A Guarda tem o que têm todos os vilarejos catarinenses acomodados à beira do mar. Mas nenhum tem, antes do mar, aquele rio que passa ao lado, encostado nas casas, e deságua no oceano. Nenhum vilarejo tem aquela península de areia com aquele desenho único.

Capote nunca moraria ali. Li num guia de turismo que “a Guarda mantém o clima de colônia de pescadores, não há grandes agitos à noite, nem variedade de restaurantes estrelados”.

Eram as qualidades que o surfista queria preservar. É de se perguntar, na Guarda e no entorno, quem mais se dispõe a enfrentar os invasores. E quem, de alguma forma, com a adesão ao som alto nos bares e restaurantes e com a incorporação do comportamento dos “bacanas”, não contribui para que a Guarda atraia os predadores que Ricardinho temia?

Capote diz, lá em 1972, que Nova York continuaria sendo cosmopolita, “a única cidade-cidade mesmo do mundo”, se impusesse suas vantagens e continuasse a dizer a quem acolhesse: aqui você pode ser “uma multidão de pessoas”.

A Guarda e tantos outros lugares únicos podem estar sendo desfigurados por não terem essa capacidade de fazer com que novos moradores, visitantes e empreendedores defendam suas essências. E o turismo vem deixando de ser ameaça ambiental a lugares que se fazem respeitar e impõem regras aos que apenas passam por ali.

O som alto é a queixa que se destaca no desabafo de Ricardinho porque abarca todo o resto. O predador que leva a música ruim para a praia leva junto a deseducação sem limites. Os nativos que compactuam com isso (quando não são os primeiros a poluir a praia com barulho) deveriam aprender com o manifesto.


Vale não só para as praias. Vale para aquele lugar em que em algum momento, sentado numa pedra, você deve ter pensado: eu viveria aqui, e só aqui, para sempre.

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