sábado, 12 de junho de 2010



12 de junho de 2010 | N° 16364
CLÁUDIA LAITANO


Sob a burka

Nascer mulher no Irã ou no Afeganistão, neste começo de século 21, é um azarão histórico. Não que a rotina nesses países seja um mar de rosas para os homens, mas é uma boa mostra do inferno para a imensa maioria das mulheres.

A vida sob o regime de exclusão por gênero oferece uma espécie de janela para a Idade das Trevas, uma pequena e dolorosa nota ilustrativa a respeito daquilo de que boa parte do mundo se livrou – no caso de alguém sentir saudade.

Por ironia, ou porque não poderia ser de outro jeito, têm sido as mulheres as melhores narradoras dos dramas cotidianos que se escondem por trás das grandes questões políticas e religiosas desses países. No caso do Afeganistão, coube à jornalista norueguesa Asne Seierstad narrar os três meses em que conviveu com uma família afegã no best-seller O Livreiro de Cabul.

Asne, que esteve em Porto Alegre como palestrante do seminário Fronteiras do Pensamento, descreveu, por exemplo, a sensação de quem usa uma burka (“aperta e dá dor de cabeça, enxerga-se mal através da rede bordada”), além de contar os artifícios que as mulheres usam para seduzir os homens de sua preferência, mesmo cobertas dos pés à cabeça (nunca subestimem a capacidade de uma mulher de se fazer notar quando ela quer, rapazes).

No caso do Irã, a autora que tem aproximado o Ocidente do cotidiano sob o regime teocrático é Marjane Satrapi, que transformou o gibi Persépolis em outro best-seller, adaptado logo em seguida para o cinema. Nascida em 1969 em uma culta família de classe média alta ligada a movimentos de esquerda, Marjane viu seu mundo virar de cabeça para baixo com a ascensão dos aiatolás ao poder em 1979, história narrada em seu livro mais conhecido.

Marjane acaba de lançar outro gibi, Bordados, mais leve e divertido e menos ambicioso do que Persépolis. O “bordado” do título refere-se à cirurgia para a restituição do hímen a que muitas mulheres iranianas se submetem para enganar o futuro marido em caso de “deslize” antes do casamento (nunca subestimem a capacidade de uma mulher de enganar um homem quando isso torna-se absolutamente necessário).

Ao contrário da artista Marjane Satrapi, a estudante Neda Soltan tornou-se um símbolo involuntário da resistência do povo iraniano ao regime do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Abatida por um atirador de elite durante as manifestações contra a reeleição fraudulenta de Ahmadinejad no ano passado, Neda tornou-se conhecida no mundo todo graças a um vídeo feito por um celular e postado no YouTube, flagrando o exato instante em que, de olhos desafiadoramente abertos, ela morreu.

Um ano depois, um documentário produzido pelo canal HBO conseguiu furar o bloqueio ao redor da família de Neda para contar sua história. (O vídeo está integralmente disponível no YouTube desde a semana passada, em inglês, sem legendas: http://migre.me/NRCA.)

Ontem, em visita oficial à China, Ahmadinejad criticou a “hipocrisia” dos Estados Unidos pela aprovação das sanções contra o Irã. Nada mais previsível. Assustadora mesmo é sua versão “light” embalada para consumo externo: “As duas nações, China e Irã, possuidoras das mais antigas civilizações, podem permanecer juntas para que o sonho de um mundo melhor se torne realidade”.

Atire a primeira pedra (e no Irã isso não é figura de linguagem...) quem não sente um arrepio na espinha imaginando o que seria “um mundo melhor” para Ahmadinejad.

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