sexta-feira, 18 de junho de 2010



18 de junho de 2010 | N° 16370
FABRÍCIO CARPINEJAR (Interino)


A importância do tio para a evolução da espécie

Toda família tem um tio fracassado. Aquele tio que não se firmou em nenhum emprego. Ou um tio tarado, o que erramos o nome da nova esposa.

É uma figura essencial para o equilíbrio genealógico. Será a fonte de fofocas na falta de assunto durante as datas festivas. Em caso de silêncio fúnebre na hora do pernil, é alguém perguntar “E como está o tio?” e a maldade alegre volta a correr solta.

Tio é o único parente que pode ser nosso ou não, dependendo das circunstâncias. Um ioiô de nossas vontades. Um curinga do nosso oportunismo. Se ele comete um crime, nunca ouvi seu nome, é muito distante. Se ele fica milionário, é irmão de meu pai ou de minha mãe, achegado demais, um padrinho espiritual.

Falo de cadeira cativa, sou tio, nem quero descobrir qual o meu papel para os dois filhos de Carla. Talvez seja o do tarado e do fracassado simultaneamente.

O bom de exercer essa função intelectual é que não temos noção do que representamos para os outros. O tio é o que nos mantém jovens, uma década mais velho ou alguns anos a mais, porém sempre acabado ou vítima de uma recuperação difícil, o que dá no mesmo para assegurar o viço de nossa aparência. Em função de sua coragem (que para muitos é inconsequência), alimento uma admiração clandestina pelo personagem.

Pois encontrei com o tio Daciano no último final de semana. Simpático, fanfarrão e encharcado de uma felicidade pouco educada (como deve ser a autêntica felicidade). Foi num churrasco de improviso, em que sobram copos e os pratos não são suficientes. Ele mora no Acre. Não entendo direito do que vive, acho que é de transporte de carga.

Nossas conversas eram tomadas por demonstrações. Eu pretendi antecipar seu sofrimento com o inverno gaúcho. Negaceou com os dentes e mostrou sua jaqueta de couro, toda forrada de lã.

– Não sofro, vê essa jaqueta?

Toquei na blindagem, analisei o zíper e elogiei seu aspecto imponente de armadura.

– Comprei por R$ 50 na Bolívia. Tenho três na mala.

Mudei de tema e confessei que meu relógio machucava o pulso, apesar de não abdicar de pulseira grande, chamariz da curiosidade feminina. Ele riu, e retirou três exemplares de sua jaqueta.

– Comprei por R$ 80 na Bolívia. Troco a cada viagem. Quer ver?

Arrisquei comentar de perfumes, que meu refil de Diesel terminou. Ele sacou três vidros de um bolso secreto da jaqueta: Jean-Paul Gaultier, Carolina Herrera e Armani.

– Experimenta! Comprei na Bolívia pela metade do preço. São de 50ml.

Depois de borrifadas e testes, lamentei que não havia café para lavar a respiração. Que nada, ele arrancou um saquinho de grãos dos fundilhos da calça e estava resolvido o impasse.

Eu me enxerguei diante de um colecionador. Um mágico retirando das mangas o Zoológico de Sapucaia. Ele agia como um expositor ambulante. Encarnava o casamento da revista da Avon com a Enciclopédia Mirador. Sua língua imprimia preços de passagens, de celulares, de computadores, de iPods. E fechava a vitrine tocando em meus ombros, num suspiro samaritano: “Fabrício, está pagando caro sua vida...”

Quando ele começou a falar de sua mulher, não resisti:

– Já sei, conheceu na Bolívia.

Fabrício Carpinejar substitui David Coimbra, que até 12 de julho escreve crônicas no Jornal da Copa

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