terça-feira, 22 de junho de 2010



22 de junho de 2010 | N° 16374
MOACYR SCLIAR


O renascimento do Cruzeiro

Ser membro da Academia Brasileira de Letras é, naturalmente, uma distinção, mas tem os seus inconvenientes, como descobri na semana passada: tendo ido ao Rio para a reunião da ABL, perdi um acontecimento histórico: ao derrotar o Brasil de Farroupilha, o Esporte Clube Cruzeiro de Porto Alegre garantiu seu retorno à primeira divisão do futebol gaúcho, após 32 anos de ausência.

Lamento que meu falecido pai, José Scliar, cruzeirista fanático (e um dos 18 torcedores que, segundo o folclore porto-alegrense, o Cruzeiro tinha) não haja vivido esse momento glorioso. Foi meu pai quem me introduziu ao futebol: eu tinha a paixão pelo Cruzeiro no genoma.

E tinha de ser uma paixão mesmo. A trajetória do Cruzeiro era um tanto desconcertante. Terceira força do futebol gaúcho, o azar no entanto nos perseguia. Mas, e isso ajuda a entender o “pathos” cruzeirista, não era um azar constante. De vez em quando, e da forma mais inesperada, o time ganhava de goleada, renovando nossa fé.

Chegamos ao auge quando o Cruzeiro tornou-se o primeiro time gaúcho a excursionar pelo Velho Mundo, o que aconteceu duas vezes, em 1953 e 1960. Na primeira excursão, o Cruzeiro conseguiu até empatar com o Real Madrid e voltou com o autoatribuído título de Leão da Europa.

E aí vinham as surpresas desagradáveis. A última partida a que assisti, sempre ao lado do meu pai, foi realizada no estádio do time da CEEE, o Força e Luz, na Rua Alcides Cruz. Quem perdesse ficaria em último lugar. Mas, para o Cruzeiro, bastava um empate, e, quando terminou o primeiro tempo, estávamos ganhando de 3 a 0. No fim, perdemos por 4 a 3.

Ao Cruzeiro, devo a inspiração para A Colina dos Suspiros, livro destinado a jovens, que foi traduzido em vários países. O título nasceu da localização do estádio do clube, que ficava na Colina Melancólica, ali onde estão os cemitérios porto-alegrenses.

Convenhamos que não era um lugar muito alegre, e o estádio acabou sendo vendido para o Cemitério João XXIII. O clube recebeu parte do pagamento em jazigos perpétuos, que valiam uma soma apreciável e foram usados na compra dos passes de jogadores.

Quando ouvi um desses jogadores dizendo, na Rádio Gaúcha, e com muito orgulho, que seu passe havia sido adquirido por seis túmulos, dei-me conta de que aquele era o time ideal para um ficcionista, e a partir daí nasceu a história.

Agora, o Cruzeiro mostra sua bravura, retornando à primeira divisão. Nas palavras de Jayme Sirotsky, presidente emérito da RBS, o time, como a mitológica fênix, renasceu das próprias cinzas. E tenho certeza de que, assim fazendo, inspirou nossa seleção na vitória sobre Costa do Marfim. “Se o Cruzeiro pode, nós também podemos”, deve ter dito Dunga. Viva o Cruzeiro.

“Começa a partida Brasil x Portugal. Pedro Álvares Cabral apossa-se da pelota e avança, dribla um índio, dribla dois, dá um passe para Martim Afonso de Souza, este aciona Mem de Sá, surge Tiradentes, tenta interceptar, não consegue, mas aí aparece dom Pedro I, brada ‘Independência ou Morte’, domina a jogada, passa a dom Pedro II, que deixa para Deodoro da Fonseca, este estende a um presidente, a outro, a democracia chuta, e é gol! Gol do Brasil!”.

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