quarta-feira, 30 de junho de 2010



30 de junho de 2010 | N° 16382
DAVID COIMBRA


Velho encontro com Mandela

Conheci Nelson Mandela. Ou, antes, eu o vi em pessoa. Não é pouca coisa. Maria João, a moçambicana dona da pousada em que ficamos em Durban, Maria João disse que Mandela é um santo.

É mais do que isso.

Nenhum santo, provavelmente nenhum homem na história da civilização conseguiu alcançar a façanha de Mandela. Este homem, Mandela, esteve preso por 27 anos. O regime racista contra o qual lutava, e que o levou à prisão, durou de 1948 até a libertação dele, no começo dos anos 90. Quer dizer: durante mais de 40 anos, o racismo foi lei na África do Sul.

Em 1994, finalmente foram realizadas eleições livres e Mandela elevou-se à presidência. Poderia ter se vingado, como muitos negros queriam, e ainda querem. Poderia ter partido para a revanche. Ao contrário: Mandela ensinou aos sul-africanos que todos eles, brancos, negros, mestiços e indianos, faziam parte do mesmo país, que eram irmãos e que tinham de conviver em harmonia.

No discurso tudo isso é muito bonito, só que, estando aqui, pode-se constatar que Mandela conseguiu atingir seu objetivo na prática. A todo momento ouço brancos e negros repetindo que o país mudou, que atitudes intolerantes não são mais aceitas, que é preciso olhar para frente.

É evidente que ainda existem radicais de ambas as partes, mas a ideologia de paz de Mandela entranhou-se na alma dos sul-africanos. Racionalmente, Mandela conseguiu mudar os africanos sentimentalmente. Hoje ele é uma unanimidade, é amado e respeitado por todos. É mais do que um santo.

Pois estive frente a frente com esse homem. Foi em julho de 1991. Fazia pouco mais de um ano que Mandela havia sido libertado da prisão. Viajara ao Brasil para visitar Brizola, que governava o Rio de Janeiro.

Por coincidência, também fui ao Rio e também queria encontrar Brizola. Estava preparando uma alentada reportagem sobre os 30 anos da Campanha da Legalidade, já havia entrevistado praticamente todos os personagens envolvidos na história, menos um. O mais importante. Brizola.

TINHA de entrevistar Brizola para que minha matéria ficasse completa. Mas não conseguia... Ele se negava a falar sobre o assunto. Queria, como Mandela, olhar para frente, queria ser presidente da República e achava que remoer aquela velha história de rebeldia não lhe traria novos amigos.

Liguei mais de 80 vezes para o Rio, tentando falar com Brizola, a conta telefônica do jornal deve ter subido a Saturno. Tudo em vão. Ele estava decidido a não falar. In extremis, resolvi arriscar.

Menti ao diretor do jornal que havia marcado a entrevista, porque só com a entrevista marcada ele me daria a viagem. Assim, embarquei para o Rio confiante em meu poder de persuasão. Supunha que, chegando lá, apresentando-me pessoalmente, convenceria Brizola a falar.

Como diria Chico Buarque, qual o quê! Brizola não me recebia de jeito nenhum. Acampei na sala de espera do gabinete dele. Passei lá dois dias e duas noites praticamente inteiros, os secretários de Estado estavam todos solidários com meu drama. Foi aí que um deles me assoprou: Brizola receberia Mandela no Copacabana Palace.

A parte inicial do programa era fechadas aos jornalistas, mas os secretários, que àquela altura já eram meus amigos, ou ao menos tinham pena de mim, me colocariam no hotel e me poriam diante de Brizola. A partir daí, cabia a mim convencê-lo a dar a entrevista.

A etapa inicial do plano deu certo. Fui introduzido no hotel e posto em frente a Brizola e Nelson Mandela. Ficamos eu e os dois grandes políticos parados no saguão. Olhei para Mandela. Ele ainda não havia se transformado em santo. Sua grande obra se daria nos anos seguintes. Mesmo assim, era uma figura impressionante.

Um homem alto, mais alto do que eu, que meço 1m82cm. Magro, muito ereto e elegante dentro do seu terno. Os cabelos grisalhos. A pele de um tom marrom-caramelo, se é que essa cor existe. Sorria com serenidade, um sorriso sem dissimulações, que convidava o interlocutor a sorrir também. Seria amigo deste homem, pensei.

Mas não lhe dei mais importância. Preocupava-me era com Brizola. Ele me daria a entrevista?

Não.

Essa foi sua resposta: não. Eu mentira ao diretor do jornal para conseguir a viagem, eu estava havia dois dias no Rio, eu falara com Brizola. Não podia voltar sem a entrevista.

No momento em que ele disse o não definitivo, os secretários me apartaram do lugar. Fiquei sentado nas escadarias do Copacabana Palace, com vontade de chorar. Brizola e Mandela conversaram por algum tempo, depois o local foi aberto aos demais jornalistas, que entrevistaram os dois em coletiva. Pouco me importava a coletiva. Fiquei esperando que terminasse. Quando Brizola e Mandela saíram, corri até eles.

– Governador! – Chamei. Brizola me olhou, enquanto descia a escadaria do hotel. – Governador, o senhor sempre fala nas crianças. As crianças, os jovens não conhecem a Legalidade. O senhor tem que contar essa história, governador! Pelos jovens! Pelas crianças!

Brizola parou. Mandela parou também. Mandela ainda sorria, observando-me, decerto considerando-me inconveniente, como, aliás, estava sendo. Brizola pensou por um momento. E sentenciou:

– Falamos mais tarde. Me procura no gabinete.

Horas depois, à meia-noite, ele me concedeu a entrevista no Palácio das Laranjeiras. Voltei para Porto Alegre com a matéria. E com uma lembrança de Mandela de brinde. Lembrança rala, talvez seja, mas ao menos tenho uma.

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