sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Como farsa, filme repete saga trágica

Ao contrário de "Vidas Secas" (1964), cinebiografia de Lula tem imagem acadêmica, linguagem arcaica e conformismo

Divulgação

A atriz Glória Pires interpreta dona Lindu, mãe de Luiz Inácio Lula da Silva e um dos eixos narrativos do longa de Fábio Barreto



INÁCIO ARAUJO - CRÍTICO DA FOLHA

"Lula, o Filho do Brasil" é um fato político antes de ser cinematográfico. Seu sucesso, se ocorrer, teria interferência no resultado das eleições? Seria sinal do início (apogeu, alguns dirão) de um culto à personalidade? Ou puxa-saquismo? E os investidores do filme visariam lucro com o filme ou com futuros contratos oficiais?

As sombras que envolvem "Lula" não são poucas, mas a verdade é que não dizem respeito diretamente ao filme, que sugere uma série de outras indagações. A primeira questão a ser endereçada ao filme, do ponto de vista puramente do argumento (isto é, da história que conta), é a seguinte: Lula encarna a ideia de "filho do Brasil" a que aspira o longa?

A resposta é sim, em mais ou menos todos os sentidos. Ele é filho de uma mãe que criou sozinha vários filhos (como a maior parte das mães de classe pobre no Brasil).

Ele vem do Nordeste para o Sudeste. Dá duro como trabalhador e passa por uma série de dramas pessoais (morte da primeira mulher, perda do dedo etc.). É certo que nem todo nordestino pobre e de poucas letras e com dramas pessoais na biografia chega à Presidência de um país que, afinal, também não é essa mixaria toda.

Mas o ponto não é esse: a exceção apenas confirma a regra do nordestino homem de valor, de luta etc. que o filme vende (Lula é o presidente que qualquer um poderia ser). E, sobretudo, da nordestina boa mãe que luta, como os filhos, contra a natureza ingrata, o marido ingrato etc. Trata-se de uma história de "vencer na vida", mas não como a de "2 Filhos de Francisco".

Aqui o ponto não é vencer. É, apenas, sobreviver às agruras da vida (sim, o filme é lulista: não ataca oligarquias, não culpa ninguém pelos problemas), de uma vida de que se omite justamente a vitória (a vida política e a Presidência estão praticamente ausentes do filme).

Há pontos em comum com "2 Filhos", sem dúvida. O apelo melodramático é comum aos dois filmes, por exemplo. Mas as diferenças são também claras. O pai de "2 Filhos" educa os filhos para o sucesso. A mãe de "Lula", para a sobrevivência. "2 Filhos" é um filme em que se abrem caminhos; "Lula" é o final de uma trajetória.

Não se trata de um juízo de valor. "Lula" começou a ser feito em 1964 com o nome de "Vidas Secas". Luiz Carlos Barreto, pai do diretor Fábio Barreto (que sofreu grave acidente de carro no Rio no último dia 19), fotografou magnificamente o filme de Nelson Pereira dos Santos sobre a família de retirantes que desce a pé de um Nordeste miserável e atingido pelas secas. Nelson Pereira dirigiu esse filme-marco do cinema novo, isto é, algo que via o cinema como maneira de mostrar e pensar o país, de revelá-lo, mas também de transformá-lo.

Um filme de pequeno público (desses que repugnam a nossa atualidade mercadista) e um clássico.

Feito para o êxito

Quarenta e cinco anos depois, "Lula" repete a rota Nordeste-Sudeste. Como farsa, naturalmente. Pois não existe nada a mostrar, exceto uma saga pessoal. Não existe nada a transformar ou a revolucionar. O filme se dá por feliz de envolver e comover o espectador.

Para tanto, o diretor Fábio Barreto serve-se do recurso mais habitual do cinema brasileiro atual: a linguagem arcaica, fundada na representação clássica, que o cinema mundial utilizava 60 ou 70 anos atrás. Luiz Carlos Barreto, nordestino e produtor deste filme, parece considerar encerrado o ciclo nordestino, ao menos o seu.

Da trágica saga da família retirante de "Vidas Secas", passamos ao retirante vencedor (se, no filme, Lula é sobretudo um sobrevivente, é impossível ignorar o chamado "extracampo", no caso a parte da biografia ausente do filme e que, num salto, explode no pós-final), e vencedor graças à bravura indômita de sua mãe.

Mudou o país? Há um caminho aí que não se pode ignorar, em todo caso. Mudou, é certo, no cinema. Do inquieto "Vidas Secas", passamos ao conformismo satisfeito, à imagem acadêmica, ao drama "emocionante" (quer dizer: que chora por nós), a "Lula".

Não é um filme de campanha, em princípio. Mas é um filme feito para o êxito, como as campanhas políticas. Desculpe, eu sou mais "Vidas Secas".

LULA, O FILHO DO BRASIL

Direção: Fábio Barreto.
Produção: Brasil, 2009
Com: Glória Pires, Rui Ricardo Diaz, Cleo Pires e Juliana Baroni
Onde: Unibanco Arteplex Frei Caneca, Cine Bombril, Cine Tam e circuito
Classificação: 12 anos
Avaliação: ruim

Nenhum comentário: