quarta-feira, 13 de janeiro de 2010



13 de janeiro de 2010 | N° 16214
DAVID COIMBRA


Diversões inglesas

Houve quem dissesse que a rainha Maria Tudor, da Escócia, nunca esteve tão linda quanto no dia em que se preparou para morrer. Exagero, decerto. Maria Tudor, segundo os testemunhos da época, tratava-se de uma bela mulher.

Seu nariz talvez se sobressaísse além do desejável, mas esse não era um defeito para o século 16. Eu mesmo, vou dizer, conheço algumas narigudas que, se tivessem o nariz menor, teriam também menor encanto.

Naquela manhã, a da sua morte, Maria estava muito digna, muito solene e, contraditoriamente, muito calma. É provável que tenha sido esta a causa do seu último sofrimento, ela que tanto sofreu em 18 anos de prisão. Suponho que, ao fitar a rainha em toda a sua majestade, o carrasco tremeu atrás do negro do capuz. Resultado: errou o pescoço no momento de decapitá-la, e teve de aplicar três golpes de machado para enfim apartar a cabeça do corpo.

Executada a rainha, o verdugo levantou a cabeça pelos cabelos a fim de mostrá-la para a assistência, como de praxe, mas ficou só com o tufo nas mãos. A cabeça escorregou e rolou pelo chão de madeira do cadafalso.

Ao mesmo tempo, para grande espanto da plateia, o vestido de Maria farfalhou e algo saiu de sob as folhas de seda. Era o cachorrinho da rainha, que fez um giro pelo patíbulo, chafurdou um instante no sangue da dona e depois saiu correndo e uivando de horror.

Conto a história desta execução célebre para destacar a relevância da profissão de carrasco na Inglaterra do século 16. É que as execuções capitais eram abundantes na Velha Álbion. Em qualquer cidade de importância mediana os enforcamentos, torturas, decapitações e estripamentos públicos ocorriam pelo menos uma vez a cada mês, para gáudio da população.

Mais do que o teatro, mais do que o jogo da péla, os ingleses apreciavam as diversões violentas, como as luta de ursos e de dogues, e as execuções de penas de morte. Assim, saudava-se o carrasco como se saudava o artista.

De todos os divertimentos, nenhum divertia mais os britânicos do que assistir à morte de um condenado por alta traição. Aí é que o talento do carrasco aparecia. Porque ele tinha de colocar o apenado na forca e esganá-lo quase até a morte. Quase.

Quando o supliciado encontrava-se meio morto, o algoz devia tirá-lo com presteza da corda e levá-lo para uma mesa, onde abriria-lhe o ventre a faca e o estriparia com critério. O ideal era que o condenado visse suas próprias vísceras na mão do verdugo, mas havia os que não colaboravam com o espetáculo e teimavam em morrer antes do clímax.

Um dos meus historiadores favoritos, o francês Jacques Chastenet, contou em livro como os ingleses festejaram a façanha de um executor que conseguiu agarrar na mão o coração palpitante de um jesuíta enquanto seus lábios murmuravam a derradeira oração. Quer dizer: os ingleses eram uns bárbaros.

No fim do século, Londres ganhou o Teatro Globo e o Teatro Globo ganhou as peças de Shakespeare, que bom sucesso fizeram, mas os ingleses continuaram preferindo divertimentos brutais. Só um tipo de entretenimento superou uma boa decapitação no gosto dos britânicos: o futebol. Por quê?

Porque o futebol reproduz as paixões mais acerbadas da vida. Existem execuções no futebol. Existem até torturas. É, na sua representação, um jogo violento.

Donde, a sanha guerreira das torcidas, as faixas do gênero “jamais nos matarão”, a exigência de garra e luta que se faz aos jogadores. Compreensível. Até defensável.

Mas os torcedores da Dupla Gre-Nal às vezes exageram. Foguetório antes de treinamento na Serra, disso nem um inglês do século 16 seria capaz.

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