terça-feira, 26 de janeiro de 2010



26 de janeiro de 2010 | N° 16227
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sobre uma foto

No outono de 1964, a noite acabara de cair sobre o Brasil. Inauguravam-se os Anos de Chumbo. Por mais de duas décadas, todas as leis se submeteriam a uma só – a do arbítrio.

Acabei de revisitar a inauguração daquela era de autoritarismo. O Jornal do Povo, de Cachoeira, mantém uma seção dominical chamada Olho Mágico, em que se publicam fotos e notícias antigas da cidade. E é nela que me deparo com um flagrante da vida real: um instantâneo do coral da Escola Normal João Neves da Fontoura no dia 22 de maio de 1964.

Em Brasília, em Porto Alegre, em centenas de lugares, brasileiros tramavam a perenidade do golpe de 31 de março. Rompia-se o Estado de Direito, rasgava-se a Constituição. Quem era contra a nova ordem submetia-se à violência, à cassação de mandatos, à perda de prerrogativas de cidadania.

Mas havia uma lógica estranhamente perversa no processo. Funcionava um simulacro de instituições democráticas. Mesmo mutilados, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados mantinham uma aparência de normalidade. Mesmo desfigurada, a Assembleia Legislativa realizava sessões com discursos e moções. Era a comédia trágica dos parlamentos amputados.

Tempos piores ainda viriam, de mais violência. Mas naquele 22 de maio de 1964, as meninas do Coral do João Neves ainda podiam sorrir para a câmera, alheias ao que se passava ao seu redor. Como a maioria das pessoas, estavam algo distantes do que sucedia em sua cidade, em seu Estado, em seu país.

Olhadas agora, são belas em seus uniformes, em seus sorrisos, em seu amor pela vida. Conheci várias delas, tão bonitas, em festas, bailes, reuniões dançantes. Acompanhei de perto muitas de suas alegrias, vários de seus romances. De algumas me perdi, de outras sou amigo até hoje.

Mas o que mais me toca é vê-las nesta foto, como se séculos não houvessem transcorrido. Estão aqui no zênite de sua lindeza, os corações cheios de esperança.

O país ia mal ou andava confuso? Não era culpa delas. Elas tratavam de sobreviver. Pois sobreviver para contar também é uma forma de luta.

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