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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
20 de janeiro de 2010 | N° 16221
DIANA CORSO
O Haiti não é aqui?
Um telefonema da minha tia tirou-me um pouco da impotência frente às imagens do desastre haitiano; ela é voluntária e está embarcando para lá. Se alguém da família vai é como se eu fosse um pouquinho.
Profissional madura, já esteve no Timor e trabalha na saúde pública, mas nunca viu o que provavelmente lhe espera: um hospital de campanha onde vai anestesiar para amputações. Parece que as guerras mundiais não acabaram, transmutaram-se em catástrofes, epidemias e miséria endêmica. Invejo-a por ser útil longe de casa.
Ao definir o que é um sobrevivente, Elias Canetti observa que é aquele que permanece de pé, frente ao outro que jaz. Diz ele: “É como se anteriormente tivesse havido uma luta, e o próprio sobrevivente houvesse abatido o morto”.
O amontoado de corpos dos haitianos nos invade apenas por imagens, é inodoro, evitável. Mas não ignoremos, que esse confronto coloca-nos na posição de sobreviventes: que bom que não foi aqui, que bom que não foi comigo.
Frente a isso, a luta cotidiana que se trava no Brasil para sobreviver à violência urbana parece fichinha, já que nossa guerra civil é sorrateira, irruptiva. Mas a cada dia em que um desabamento, uma inundação, um massacre entre miseráveis ou um terremoto revelam nossa fragilidade, tornamo-nos mais sobreviventes ainda, queiramos ou não.
Um terremoto é uma catástrofe natural, ninguém tem culpa! Mas, quando isso ocorre num dos lugares mais miseráveis do mundo, a desgraça se potencializa, a morte se traveste de peste, multiplica-se em ondas. E isso sim é resultado do modo como nossa sociedade se organiza. Não gosto de crer que estamos condenados a este medievo tecnológico, onde o fausto de uns convive com a vida sub-humana dos outros.
Um sobrevivente é incapaz de ignorar que tudo pode ruir ou desaparecer, dependendo do azar ou de uma presença de espírito, a qual nem sempre é suficiente. Nosso mundo é frágil, fundado sobre uma miséria de proporções endêmicas, de desperdício imensurável.
Pós revolução industrial acreditou-se na prosperidade natural dos negócios e da tecnologia. O Haiti nos arranca desse sonho ingênuo, e com ou sem anestesia, o custo da sobrevivência desse modo de funcionamento requer amputações, a miséria não é casualidade.
Cresci entre velhos que carregavam a guerra e o holocausto em suas memórias. É duro pensar que é uma questão de sorte, de acaso, estar ou não no lugar e na hora onde tudo perde o sentido. Meu coração está com os milhares de voluntários no Haiti, a solidariedade é o único contraponto da destruição.
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